domingo, 30 de agosto de 2009

Olhar Multiplicado

Texto de Divino Sobral

Olhar multiplicado enfoca um recorte na produção goiana de arte contemporânea, apresentando um elenco que constitui um núcleo a partir do qual as linguagens visuais desenvolveram-se e adquiriram adensamento reflexivo. Seu intuito é contribuir com o processo de dilatação e revigoramento do circuito artístico brasileiro, bem como, corroborar com o pensamento de que diferentes posições artísticas podem conviver no mesmo espaço, vindo caracterizar um ambiente permeado pela multiplicidade de intenções inventivas.

Creio que o conjunto de obras dessa exposição, deixa patente que o que move e impulsiona a produção deste elenco, é uma vocação para formatar trabalhos capazes de ser incorporados pelo debate artístico brasileiro. Esta vocação é despertada, na medida que os artistas desenvolvem uma atitude negativa diante dos códigos da tradição plástica regionalista, calcada na equação dos termos rural x urbano e com enorme preponderância do primeiro sobre o segundo termo. É claro que alguns artistas que operam com processos arqueológicos, investigando a formação da identidade e da memória, manipulam narrativas mergulhadas na bagagem regional vernacular, entretanto, o fazem inserindo tais elementos dentro da trama de configurações e conceituações contemporâneas.

Os artistas aqui exibidos estão cientes de que não há mais interesse na ortodoxia regionalista; sabem também que não há mais suporte para a defesa de qualquer nacionalismo estético na arte brasileira; e ainda mais, sabem que isto tudo não implica no imperativo de tomar para suas obras genealogias inteiramente filiadas à arte internacional. Como muito bem coloca Tadeu Chiarelli, a produção brasileira, a partir dos anos 80, procura estabelecer um diálogo tanto com a arte internacional, quanto com a arte brasileira preexistente, considerando a legitimidade das produções barroca, modernista, moderna, erudita e popular, num processo de amadurecimento que a encaminha para uma posição de disputa internacional, instaurando dobradiças que dão mobilidade às questões da arte contemporânea1.

Os artistas elencados nessa mostra, a partir dos anos 90, assumiram a mesma identidade – ou crise de – que assumira naquele momento a arte brasileira. Empregando raciocínios circulantes num meio mais amplo e trabalhando em sintonia com os problemas visuais da atualidade, desencadearam, aqui, um crescente processo de multiplicação do olhar, gerando uma proliferação de encaminhamentos que renovaram a reputação da produção goiana. E é assim que a exposição, feita como um panorama multifacetado, ambiciona revelar, simultaneamente, um corpo da arte goiana atual e uma visão dos desdobramentos da prática artística contemporânea pelo interior do país.

Multiplicar o olhar é uma operação complexa, que envolve muitos elementos numa equação sofisticada que articula com informações localizadas na base da arte atual. É uma manobra de risco, que implica numa miríade de questões, tais como: o redirecionamento dos aspectos sensíveis e conceituais que acionam o deslocamento do estatuto do objeto de arte; a revisão do estatuto do autor; a necessidade de elaboração de outros modos de solicitação ao espectador; a utilização enviesada da História da Arte; a contaminação com a linguagem da cultura de massas; a hibridação dos procedimentos artísticos e a incorporação de suportes, materiais e meios não artísticos. Implica, finalmente, na ampliação das maneiras de conceber e formalizar o trabalho de arte e no dilatamento das dimensões simbólica e política da arte.

O conjunto que forma-se do aglutinamento destes artistas é heterogêneo. Nele estão imbricadas muitas crenças artísticas, formulações conceituais, categorias de linguagem, procedimentos técnicos e interesses poéticos; por isso, no exercício desta reflexão, sou levado a reunir núcleos de artistas que problematizam questões que, de alguma maneira, demonstram afinidades; a enfeixar suas manobras sob a tutela de determinadas chaves interpretativas; todavia, sem desejar estancá-las dentro destas chaves, e sim, permitir que transitem por quantas chaves forem pertinentes.

É notável que nas produções de desenho e de pintura ocorrem o afloramento do selo da subjetividade, a validação da grafia pessoal que elabora anotações passionais numa documentação da intimidade, da privacidade e da memória conflituais do sujeito contemporâneo. Os desenhos de Marcelo Solá assumem o erro, a rasura e o inacabado, associam imagem e texto, manchas impactantes e vazios eloqüentes em comentários de sua experiência angustiada com o mundo. As pinturas de Telma Alves são carregadas de fluxos psíquicos, reveladores de presenças fantasmáticas saturadas de dramaticidade afetiva. As pinturas de Luiz Mauro registram, como um diário, uma iconografia dolorosa com ressonâncias religiosas. As pinturas de Sandro Gomide enveredam por pesquisas matéricas, enformando ambientes densos e subterrâneos dos quais descascam memorialismos e temporalidades. Os descompromissados e quase ingênuos desenhos de Rodrigo Godá, repertoriam relações entre o imaginário e o vivido, configurando-as em máquinas absurdas e líricas.

Uma diversidade de procedimentos são utilizados por artistas que instauram um tipo de olhar arqueológico, investigando a formação e o cruzamento das memórias particular e coletiva, e revelando as mitologias do envelhecimento, do esquecimento e da reminiscência, que servem de matéria às poéticas temporais. Enquanto o dado mnemônico em Solá é comprometido com as anotações do dia-a-dia, os trabalhos de Eliezer Szturm exibem conexões da memória com um extenso patrimônio, que vai da arquitetura vernacular à literatura, penetrando no apagamento, decalcando ruínas pretéritas e revelando atavismos. A instalação de Enauro de Castro reúne muitos elementos, de ordens antropológica, familiar e erótica, que atuam como provas documentais das diversas instâncias da formação da memória e da identidade de um sujeito fictício. Recuperando fontes das mitologias erudita e popular, a instalação de Divino Sobral concretiza um arquivo de materialidades tanto do artista quanto de outras pessoas, que à maneira de um memorial de ex-votos, reflete sobre o envelhecimento corporal. É o memorialismo, ainda, que manifesta-se tanto no emprego da herança de antigas técnicas populares de manufatura, como fazem Sobral, Carlos Sena e Paulo Veiga Jordão, quanto no rememorar empreendido por Luiz Mauro, Gomide e Godá.

Tem sido uma preocupação contínua para alguns artistas, a configuração de manobras de teor político, executadas a partir de distintos processos de apropriação e manipulação de informações, imagens e objetos que circulam na cultura contemporânea. Tais práticas propõem-se à questionar os sentidos ideológicos embutidos nas coisas, inserindo desvios nas programações originais e evidenciando a utilização das mesmas pelos sistemas de poder. Edney Antunes refuta a autoridade excludente da História da Arte, que marginaliza o que não é europeu ou norte-americano; tomando e fragmentando retratos de artistas capitais do século XX, e colocando-os em gravitação, em torno de sua fotografia como seqüestrador disposta no lugar do herói. Impedindo o descarte, Carlos Sena apropria-se de embalagens para desconstruir os signos publicitários nelas inscritos e então embaralhar as marcas e reconstruir as aparências, até confundir as identidades de mercado. Paulo Veiga Jordão ao escrever sobre a parede textos retirados da história, da literatura ou de documentos oficiais, utilizando uma têmpera produzida com cinza e esterco, enfatiza a crueldade e espuriedade da retórica discursiva do poder.

Por fim, recuperando algo do legado formal e construtivo da herança moderna, para promover cortes gráficos na arquitetura, as esculturas de Juliano de Moraes indagam pelos limites entre a arte, como linguagem rigorosamente construída, e a vida, repleta de imprevistos.

Inúmeras outras possibilidades de abordagens poderiam ser encadeadas. Vêm aos olhos reflexões sobre a qualidade orgânica que impregna alguns artistas, ou sobre o uso restrito de preto e branco desenvolvido por outros, ou sobre a conjugação de letras, palavras e textos com a dimensão visual na obra de muitos. Entretanto, deixo ao leitor a tarefa de desvendar essas imagens... e de estabelecer, ele mesmo, as suas reflexões.

Tadeu Chiarelli. Da Arte Nacional Brasileira para a Arte Brasileira Internacional / Colocando Dobradiças na Arte Contemporânea. In: Arte Internacional Brasileira. São Paulo, Lemos, 1999.


Este texto foi originalmente publicado no catálogo da exposição Olhar multiplicado-Nova arte contemporânea de Goiás. Brasília, ECCO, 2002.

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