domingo, 30 de agosto de 2009

Olhar Multiplicado

Texto de Divino Sobral

Olhar multiplicado enfoca um recorte na produção goiana de arte contemporânea, apresentando um elenco que constitui um núcleo a partir do qual as linguagens visuais desenvolveram-se e adquiriram adensamento reflexivo. Seu intuito é contribuir com o processo de dilatação e revigoramento do circuito artístico brasileiro, bem como, corroborar com o pensamento de que diferentes posições artísticas podem conviver no mesmo espaço, vindo caracterizar um ambiente permeado pela multiplicidade de intenções inventivas.

Creio que o conjunto de obras dessa exposição, deixa patente que o que move e impulsiona a produção deste elenco, é uma vocação para formatar trabalhos capazes de ser incorporados pelo debate artístico brasileiro. Esta vocação é despertada, na medida que os artistas desenvolvem uma atitude negativa diante dos códigos da tradição plástica regionalista, calcada na equação dos termos rural x urbano e com enorme preponderância do primeiro sobre o segundo termo. É claro que alguns artistas que operam com processos arqueológicos, investigando a formação da identidade e da memória, manipulam narrativas mergulhadas na bagagem regional vernacular, entretanto, o fazem inserindo tais elementos dentro da trama de configurações e conceituações contemporâneas.

Os artistas aqui exibidos estão cientes de que não há mais interesse na ortodoxia regionalista; sabem também que não há mais suporte para a defesa de qualquer nacionalismo estético na arte brasileira; e ainda mais, sabem que isto tudo não implica no imperativo de tomar para suas obras genealogias inteiramente filiadas à arte internacional. Como muito bem coloca Tadeu Chiarelli, a produção brasileira, a partir dos anos 80, procura estabelecer um diálogo tanto com a arte internacional, quanto com a arte brasileira preexistente, considerando a legitimidade das produções barroca, modernista, moderna, erudita e popular, num processo de amadurecimento que a encaminha para uma posição de disputa internacional, instaurando dobradiças que dão mobilidade às questões da arte contemporânea1.

Os artistas elencados nessa mostra, a partir dos anos 90, assumiram a mesma identidade – ou crise de – que assumira naquele momento a arte brasileira. Empregando raciocínios circulantes num meio mais amplo e trabalhando em sintonia com os problemas visuais da atualidade, desencadearam, aqui, um crescente processo de multiplicação do olhar, gerando uma proliferação de encaminhamentos que renovaram a reputação da produção goiana. E é assim que a exposição, feita como um panorama multifacetado, ambiciona revelar, simultaneamente, um corpo da arte goiana atual e uma visão dos desdobramentos da prática artística contemporânea pelo interior do país.

Multiplicar o olhar é uma operação complexa, que envolve muitos elementos numa equação sofisticada que articula com informações localizadas na base da arte atual. É uma manobra de risco, que implica numa miríade de questões, tais como: o redirecionamento dos aspectos sensíveis e conceituais que acionam o deslocamento do estatuto do objeto de arte; a revisão do estatuto do autor; a necessidade de elaboração de outros modos de solicitação ao espectador; a utilização enviesada da História da Arte; a contaminação com a linguagem da cultura de massas; a hibridação dos procedimentos artísticos e a incorporação de suportes, materiais e meios não artísticos. Implica, finalmente, na ampliação das maneiras de conceber e formalizar o trabalho de arte e no dilatamento das dimensões simbólica e política da arte.

O conjunto que forma-se do aglutinamento destes artistas é heterogêneo. Nele estão imbricadas muitas crenças artísticas, formulações conceituais, categorias de linguagem, procedimentos técnicos e interesses poéticos; por isso, no exercício desta reflexão, sou levado a reunir núcleos de artistas que problematizam questões que, de alguma maneira, demonstram afinidades; a enfeixar suas manobras sob a tutela de determinadas chaves interpretativas; todavia, sem desejar estancá-las dentro destas chaves, e sim, permitir que transitem por quantas chaves forem pertinentes.

É notável que nas produções de desenho e de pintura ocorrem o afloramento do selo da subjetividade, a validação da grafia pessoal que elabora anotações passionais numa documentação da intimidade, da privacidade e da memória conflituais do sujeito contemporâneo. Os desenhos de Marcelo Solá assumem o erro, a rasura e o inacabado, associam imagem e texto, manchas impactantes e vazios eloqüentes em comentários de sua experiência angustiada com o mundo. As pinturas de Telma Alves são carregadas de fluxos psíquicos, reveladores de presenças fantasmáticas saturadas de dramaticidade afetiva. As pinturas de Luiz Mauro registram, como um diário, uma iconografia dolorosa com ressonâncias religiosas. As pinturas de Sandro Gomide enveredam por pesquisas matéricas, enformando ambientes densos e subterrâneos dos quais descascam memorialismos e temporalidades. Os descompromissados e quase ingênuos desenhos de Rodrigo Godá, repertoriam relações entre o imaginário e o vivido, configurando-as em máquinas absurdas e líricas.

Uma diversidade de procedimentos são utilizados por artistas que instauram um tipo de olhar arqueológico, investigando a formação e o cruzamento das memórias particular e coletiva, e revelando as mitologias do envelhecimento, do esquecimento e da reminiscência, que servem de matéria às poéticas temporais. Enquanto o dado mnemônico em Solá é comprometido com as anotações do dia-a-dia, os trabalhos de Eliezer Szturm exibem conexões da memória com um extenso patrimônio, que vai da arquitetura vernacular à literatura, penetrando no apagamento, decalcando ruínas pretéritas e revelando atavismos. A instalação de Enauro de Castro reúne muitos elementos, de ordens antropológica, familiar e erótica, que atuam como provas documentais das diversas instâncias da formação da memória e da identidade de um sujeito fictício. Recuperando fontes das mitologias erudita e popular, a instalação de Divino Sobral concretiza um arquivo de materialidades tanto do artista quanto de outras pessoas, que à maneira de um memorial de ex-votos, reflete sobre o envelhecimento corporal. É o memorialismo, ainda, que manifesta-se tanto no emprego da herança de antigas técnicas populares de manufatura, como fazem Sobral, Carlos Sena e Paulo Veiga Jordão, quanto no rememorar empreendido por Luiz Mauro, Gomide e Godá.

Tem sido uma preocupação contínua para alguns artistas, a configuração de manobras de teor político, executadas a partir de distintos processos de apropriação e manipulação de informações, imagens e objetos que circulam na cultura contemporânea. Tais práticas propõem-se à questionar os sentidos ideológicos embutidos nas coisas, inserindo desvios nas programações originais e evidenciando a utilização das mesmas pelos sistemas de poder. Edney Antunes refuta a autoridade excludente da História da Arte, que marginaliza o que não é europeu ou norte-americano; tomando e fragmentando retratos de artistas capitais do século XX, e colocando-os em gravitação, em torno de sua fotografia como seqüestrador disposta no lugar do herói. Impedindo o descarte, Carlos Sena apropria-se de embalagens para desconstruir os signos publicitários nelas inscritos e então embaralhar as marcas e reconstruir as aparências, até confundir as identidades de mercado. Paulo Veiga Jordão ao escrever sobre a parede textos retirados da história, da literatura ou de documentos oficiais, utilizando uma têmpera produzida com cinza e esterco, enfatiza a crueldade e espuriedade da retórica discursiva do poder.

Por fim, recuperando algo do legado formal e construtivo da herança moderna, para promover cortes gráficos na arquitetura, as esculturas de Juliano de Moraes indagam pelos limites entre a arte, como linguagem rigorosamente construída, e a vida, repleta de imprevistos.

Inúmeras outras possibilidades de abordagens poderiam ser encadeadas. Vêm aos olhos reflexões sobre a qualidade orgânica que impregna alguns artistas, ou sobre o uso restrito de preto e branco desenvolvido por outros, ou sobre a conjugação de letras, palavras e textos com a dimensão visual na obra de muitos. Entretanto, deixo ao leitor a tarefa de desvendar essas imagens... e de estabelecer, ele mesmo, as suas reflexões.

Tadeu Chiarelli. Da Arte Nacional Brasileira para a Arte Brasileira Internacional / Colocando Dobradiças na Arte Contemporânea. In: Arte Internacional Brasileira. São Paulo, Lemos, 1999.


Este texto foi originalmente publicado no catálogo da exposição Olhar multiplicado-Nova arte contemporânea de Goiás. Brasília, ECCO, 2002.

A pintura: O fim ou o infinito?


Pintura de Paulo Whitaker. Sem Título, 2007, óleo sobre tela, 190 x 277 cm.


Texto de Divino Sobral

Há muito se debate a finitude dos recursos, a saturação do repertório e a falta de sentido da pintura no contexto da arte contemporânea. Diante do surgimento das possibilidades de pesquisas de novas linguagens de natureza experimental descompromissadas com o aparato da tradição artística, das novas tecnologias da imagem que evoluíram aceleradamente, da para-visualidade que postulava ser a ação, o processo e o conceito, elementos com primazia em relação à forma e à plasticidade do trabalho, enfim, diante do campo ampliado da arte, artistas e pensadores inúmeras vezes anunciaram o esgotamento das potencialidades expressivas da pintura acompanhado da vontade de repelir as classificações tradicionais de categorias e de gêneros.

Entretanto, sua prática tem sobrevivido aos muitos decretos de falência que lhe têm sido impingidos em momentos críticos, e pintores têm trabalhado subterraneamente produzindo obras que manifestam vitalidade relevante ao quadro de indagações atuais.

Ferreira Gullar na Teoria do Não-Objeto (1960), afirmava que “a pintura é um mundo conceituado, que é preciso ultrapassar”, e Hélio Oiticica na apresentação do catálogo da mostra Nova Objetividade Brasileira (1967) colocava como um dos tópicos eminentes da produção o problema da “negação e superação do quadro de cavalete”. Dos anos 1960 para os 1970, miríades de novas linguagens foram empregadas, e o desenvolvimento desses campos concentrou o interesse dos artistas e das instituições mais comprometidas com o experimentalismo, o que empurrou a pintura para uma posição periférica.

A pintura era artística, contemplativa e retiniana demais para um ambiente interessado em antiarte, participação do espectador e conceito. Os decretos de falência da pintura perduraram claramente tanto no abandono por parte dos artistas que surgiram na década seguinte, quanto no conteúdo dos textos produzidos pelos críticos. A década de 1970 foi marcada pelo processo de desmaterialização do objeto artístico, por trabalhos que conduziam à pergunta “Isto é arte?”. Naquele momento Frederico Morais disse que “o artista não é o que realiza obras dadas à contemplação” e que “A obra acabou”.

Após longo período, o investimento na prática da pintura voltou a ser incentivado durante o início dos anos 1980. Os diagnósticos terminais foram revogados; e, de outra forma, sua capacidade de revigoramento foi difundida como infinita. A exposição “Como vai você, Geração 80?” (Rio de Janeiro,1984) sintetizou o momento de afirmação da nova pintura brasileira congregando uma pluralidade de comportamentos plásticos que propunham no trabalho de arte a retomada das questões da estética, da fruição, da contemplação, da figuração, do prazer retiniano, da plasticidade decorativa e do agregamento de imagens as mais diversas.

Nos anos 1990, a cena passou a não priorizar mais uma linguagem específica e as pesquisas tridimensionais, juntamente com a fotografia e o vídeo, ganharam mais adeptos. O foco foi centrado na diversidade de linguagens, técnicas e poéticas, e enfim, os procedimentos artísticos tradicionais puderam conviver pacificamente com outros mais experimentais ou de natureza tecnológica. As curadorias não buscavam discriminar as especificidades de meios ou linguagens, mas, sim, estabelecer relações semânticas entre obras com suportes e mídias as mais heterogêneas. O tema, o assunto e a narrativa reencontraram possibilidades de inserção e o conteúdo da obra voltou a importar. Os artistas que surgiram nesses anos desenvolveram pesquisas, muitas vezes sincrônicas, em diferentes áreas plásticas, e assim desmistificaram a implicação de que um meio supera e suprime o outro.

No conjunto da pintura contemporânea brasileira encontramos pletoras de encaminhamentos, seja do ponto de vista da genealogia e da formação do repertório, seja do ponto de vista formal, técnico, relacionado aos procedimentos e à fatura, seja do ponto de vista das poéticas. Esse conjunto é multifacetado, com obras de artistas de muitas gerações. Dos pintores de extração geométrica, passando por artistas com o olhar dirigido à iconografia da história, aos que dialogam com as imagens prontas industriais ou artesanais, àqueles que recuperam o arcaico e o popular; do abstrato, formal, até o figurativo, narrativo, muitos caminhos se bifurcam...

O exercício pictórico, hoje, não se encontra mais subjugado pelo estigma da falência – as assertivas que enterraram a pintura fracassaram em seus veredictos – mas, também não está colocado no centro das atenções. Participa de exposições juntamente com outras técnicas e linguagens, sem que grande estardalhaço seja promovido à sua volta.

É um exercício silencioso, ainda recluso, difícil de ser produzido porque é executado com operações cujas fórmulas já foram bastante empregadas. Difícil porque o embate do sujeito com materiais, técnicas e repertórios, com sua história existencial e com a Instituição Arte, o diálogo entre a pintura e a fotografia, o confronto do real com a autonomia dos meios, a escassa inserção pública da arte constituem um amplo leque de problemas que os pintores tentam eqüalizar durante a conformação de cada trabalho.

A pintura tendo atravessado meio século de uma história de crises e de ataques, que decretaram sua finitude, logrou permanecer no rol das linguagens artísticas e a fazer a travessia da alta modernidade: a passagem dos séculos XX ao XXI. Isto foi possível por meio do trabalho de pintores que souberam reinventar a pintura e suscitar reflexões sobre sua potencialidade para se renovar e se ampliar no espaço e no tempo.

Este texto foi originalmente publicado no Jornal Número 9, Programa Cultura e Pensamento 2006, São Paulo, dezembro de 2006.

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Evandro Prado: O sagrado dessacralizado

Evandro Prado: O sagrado dessacralizado

Texto de Divino Sobral

É das necessidades e insatisfações espirituais e materiais da cultura ocidental cristã que trata a obra de Evandro Prado. Nela questões advindas da religião, da política e do mercado cruzam-se na tessitura de um discurso plástico que reúne elementos extraídos da tradição a outros retirados do contexto hodierno.

Nos trabalhos criados pelo artista a manipulação de imagens de segunda geração ocorre com a apropriação de ícones do catolicismo popular brasileiro, e com o questionamento de seus estatutos iconográfico e de significação. As representações de personagens sagradas em embalagens e em meios os mais diversos, possuem algo de kitsch, de banal e de descartável, resultado de suas inserções no sistema das imagens de consumo da sociedade atual. Walter Benjamin coloca que a reprodução em alta escala acarreta a extração da imagem da esfera sagrada e sua conseqüente introdução numa ordem expositiva onde acontece a perda da “aura”, do elemento único e venerável contido na imagem. São essas representações do sagrado sem “aura”, dessacralizado pela multiplicação, que Prado manipula com sentido crítico, operando com interseções entre a fé e a dúvida, a candura e a violência, o gozo e a dor, a vida e a morte.

Ícones religiosos produzidos, como qualquer outro produto, para o consumo massificado de uma sociedade que aspira a aquisição de valores espirituais e bens materiais capazes de amenizar a sua crise subjetiva. Entretanto, tal crise é irresoluta à medida que a subjetividade atual encontra-se manipulada pelo processo de consumo simbólico gerenciado pela indústria e pelos aparelhos publicitários. Apesar da multiplicação dessas imagens e dos discursos que as empregam, o processo cultural da sociedade contemporânea revela a ausência de lugar para o sagrado – que traz em si a noção de eterno –, pois nela tudo é descartável, efêmero e principalmente insatisfatório.

Nas obras da série “Estandartes”, imagens dos santos católicos são desconstruídas e reconstruídas com outros materiais e procedimentos. Sobre os suportes de tecidos diversos, objetos como terços, medalhas devocionais, munição para armas, pintura e oxidação, costura e bordado são empregados na reformulação dos ícones que convivem com armas brancas e de fogo, com objetos de aprisionamento e de tortura e com elementos decorativos que aludem aos oratórios e altares barrocos. Um crucifixo ladeado por revólver e metralhadora, Nossa Senhora na presença de uma espada, São Jorge acorrentado, são imagens que todos podem reconhecer, mas também estranhar, uma vez que são apresentadas com elementos que não constituem suas iconografias tradicionais. A adjunção destes elementos anuncia o estado de crise da sociedade atual, onde a insegurança, a fragilidade, o medo e o terror sitiam o cotidiano, conferindo à existência um sentido muito fugaz.

Há nestas obras algo remanescente das Vanitas. Este gênero de natureza morta alegórica e de conteúdo religioso e mórbido que foi desenvolvido, sobretudo, durante o século XVII como instrumento da revisão espiritual da época. As Vanitas alertam para a efemeridade da vida, para o perigo das vaidades e ostentações cultuadas pela sociedade, apontam para a eminência da morte. Os crânios presentes nas Vanitas se exibem como a imagem do fim, assim como as armas apresentadas por Prado se mostram como figuras da morte próxima. Contudo, não mais a morte natural, e sim a morte provocada.

A representação de elementos referentes à morte e à dor sempre estive presente na iconografia católica, especialmente nos ícones dos santos mártires, nos quais o corpo em chagas, sacrificado em nome da fé, impacta pelo que possui de violento na formação da culpabilidade humana. Mas na obra de Prado, diante da presença dos símbolos da violência e da morte, surge o questionamento sobre o pecado e o sentimento de culpa como construções ideológicas que violentam subjetivamente a cultura ocidental, e a faz ainda mais despreparada para lidar com a morte. A representação do sagrado na cultura cristã marcada pelas imagens da violência e da morte é traumática no imaginário ocidental.

Os objetos da série “Alegorias Proféticas” são como oratórios, pequenas caixas vedadas com vidro e que guardam os tecidos com as aplicações das imagens de santos e dos ornatos da arte sacra. Sobre o vidro são transcritos trechos do Apocalipse, o último livro profético da Bíblia que revela a luta final entre o bem e o mal, o julgamento da humanidade e a ressurreição dos mortos. Novamente a alusão às Vanitas se confirma pela conexão entre o visível e o legível, pelo uso de citações proféticas, pela retórica ora ameaçadora ora esperançosa do texto extraído das “Sagradas Escrituras”.

Por fim, desejo chamar a atenção para o fato de que a presença da iconografia católica na cultura visual brasileira tem uma importância capital. Para Gilberto Freyre, o catolicismo atuou na formação da sociedade brasileira como um cimento que logrou amalgamar todas as diferenças existentes no Brasil. Sobretudo para os artistas originados no interior do país essa referência é muito forte, seja ela vinculada à iconografia erudita dos altares das igrejas seja à interpretação popular, e se confirma nas obras do mato-grossense João Sebastião, dos goianos Siron franco e Ana Maria Pacheco, do mineiro Farnese de Andrade, e dos cearenses Leonilson e Efraim Almeida.

Com os trabalhos apresentados nesta exposição Evandro Prado desdobra sua pesquisa sobre os ícones do catolicismo, atualizando um gênero da tradição pictórica ocidental que estava esquecido e o contextualizando dentro do quadro de angústias e ansiedades da cultura contemporânea.

Goiânia, 9 de março de 2008.


Publicado originalmente no folder da exposição Estandartes, Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande, MS, 2008.

No ato mesmo de desenhar - Fabiano Gonper


Desenho de Fabiano Gonper. 2008.

No ato mesmo de desenhar

No ato mesmo de desenhar,
A fome do papel devora o lápis,
E o desenhista devora imagens.

Desenho vazio.
Sobra e silhueta.
Contorno no silencioso e inquieto branco.
Sombra ao avesso.


O desenho devolve a visão àquele que olha.
É o lugar de onde se vê.
É tudo aquilo que vejo e que me vê.
Ainda que replicado, desautorizado,
Pela segunda vez gerado,
Reporta às ações do ver.

O desenho é manipulação.
O desenhista é manipulador.
O olhador é manipulador.
A imagem é manipulada e manipuladora.
A imagem sobreposta em camadas,
Acumulada na memória,
Apagada,
Ressurge espectral nas alvas paredes da caverna-museu.
Ampliada,
Revivida.

E o artista,
Sentado, observa
A imagem manipular.

No ato mesmo de desenhar,
A fome do papel devora o lápis.

Erótico,
Ato gozoso. Pincel e pênis.
Parte da mão. Calor do corpo.
Desejo calado,
No tecido tatuado como pele.
Do leite vital derramado na superfície,
Nascem figuras
Que vêem,
Ainda que sem olhos.

No ato mesmo de desenhar,
A fome do papel devora o lápis.

A angústia transpira pelos poros do tecido,
Do papel e do corpo.
O olho vê o vazio,
O preenche,
O povoa.

No ato mesmo de desenhar,
A fome do lápis devora o papel.

A fome do desenho devora o desenhista.

Divino Sobral
Maio de 2008.

Poema de Divino Sobral para a exposição individual de Fabiano Gonper na Galeria Baró Cruz, 2008.

Quando o Vento Sopra no Lugar - Poema de Divino Sobral sobre intervenções de Renata Pedrosa


Obra de Renata Pedrosa. Roda da Ribana. Intervenção na Praça Carlos Gomes, Blumenal, SC. 2003.

QUANDO O VENTO SOPRA NO LUGAR


Poema de Divino Sobral

A obra pode estar num quase-lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra.

Lugar-nenhum,
Sem pertencimento ou fios de ferro e cobre fincados no solo,
Nem afetos guardados no interior das paredes
de um cubo soprado pelo vento.
Localidade concreta e funcional.
Extrativismo espacial.
Perspectiva não vista no ir e vir
Cotidiano, pragmático, apático, apoético.
Sem mistério, sem leveza, sem nuance.
Quase-lugar, ponto de vista
Onde o vento ainda não sopra.

A obra interfere
Onde a velocidade é distância,
Onde a vastidão é obstruída,
Onde o relógio desregula e acelera
O ritmo da produção e do consumo.
A cidade, corpo indigesto, intoxicado,
Cheio de tudo e de solidão e de indiferença,
É o quase-lugar onde a obra se assenta
E faz o vento soprar.

A rua
Passagem, percurso,
Trajetória diária e despercebida,
Terreno de todos e de ninguém.
Quase-lugar,
Passagem não vista,
Paisagem que por excesso cega.

Limite do território a ser ocupado.
Disputa pelo espaço,
Entre o cálculo e o acaso,
Entre o próprio e o alheio,
Entre o nominável e o anônimo.

A obra pode estar num quase-lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra.

O lugar diz o que a obra é.
É seu cúmplice e seu assunto,
Seu suporte e sua matéria,
Sua substância e sua localização.
A partir do lugar a obra
Diz da crise do que pertence a todos:
Diz da rua e diz da praça,
Diz do mobiliário urbano e diz dos monumentos.
Diz do que não pertence a ninguém.
Apossamento sem escritura.
Efêmera intervenção.
A obra diz o que o lugar é.

Escolher,
Ocupar, interferir,
Fazer fluir, leve, aéreo.
E com gestos mínimos e econômicos,
Traçar um risco poético na paisagem,
Colher o movimento do vento.

O quase-lugar que a obra ocupa
Verte-se em lugar.
Poético sopro de vento.
Uma só vez.
Breve existência.

A obra pode estar num quase lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra.


II

Retirada, resta ausência.
Sobra a imagem do que foi e
A sabedoria de que na cidade nada perdura, e que
Um palimpsesto se escreve com palavras impermanentes.

A obra pode estar num quase-lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra,

Ainda que por poucos dias,
Apenas por algumas horas.

Depois, é só uma fotografia que desbota e envelhece.

III

Maior que um.
Maior que amnésia.
Apossar do resto esquecido do monumento,
Da fonte de águas secas,
Paradas num tempo que há muito não existe.

Peças de madeira alinhadas, ajuntadas,
Presas por tecidos amarrados com cordas.
Paredes moles de um cubo vazio,
Soprado pelo vento.
Suspenso e alvo varal,
Balança na estação do tempo que foi,
Ao som da música, frente à Sala São Paulo.

Maior que um.
Diante do monumento,
Arquitetura de outrora,
O quadrado já existia riscado no chão.
Quem sabia de sua presença?
Quem se lembrava do seu passado?
Qual era mesmo a sua função?

Águas aéreas ondulam.
A obra faz ver o vento do lugar.

A obra pode estar em qualquer não-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

IV

Corredor.
Artéria e veia revestidas de asfalto.
Trânsito e movimento.
Aqui pessoas, ali ônibus, acolá veículos particulares.
Linha de contorno divisando o tráfego nervoso.
Separando coletivo de individual.
Tentando ordenar o caos.

Linha imprecisa, parede férrea
Demarcando limites e velocidades,
Caindo no centro da pista.
A verticalidade horizontaliza-se.
O não-lugar inclina-se a lugar nenhum.
Baldio, não diz nada a ninguém.
Silencia. Rói sua própria ruína.

Colher o vento para aliviar
A pressa e a demora e a espera.
Espera enquanto vê o vento passar.

Corredor,
Passagem com esqueleto recoberto de tecido.
Divisor
Pano esvoaçante que ondula sobre
Ferro vergado, caído entre pontos de ônibus na Francisco Morato.
Uma parte da cidade desmorona sob frágil cortina branca
Que acoberta a férrea parede.
Página vazia estendida na rua
Soprada pelo vento.
Atadura que não se fixa.

A obra pode estar em qualquer não-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

V

Amarelos e cobertos.
Avenida Santo Amaro.
Alteração na paisagem.
O corredor se renova.
Trânsito intenso.
Pontos de ônibus amarelos e caducos e foscos
Substituídos por novos e vermelhos e brilhantes.

Pontos de ônibus sem cobertura,
Vazios, sem passageiros.
Mobília urbana aposentada,
Quase morta.

Panos pretos pendem
Das vigas envelhecidas,
Pesados como cobertores,
Enlutados, discretos, imóveis.
Transformações são sepultamentos de algo que passou.
A cidade mata seu passado.

O vento sopra morno, quase parado.
Mas ainda assim sopra.
O pano preto pendurado,
Parece cair e não flutuar.

A obra pode estar em qualquer não-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

VI

Cego de vê-la.
Rua que de tanto passar não vejo mais.
De tão rotineira, esquecida.
Paisagem sem paisagismo,
Vista vendada,
Olho anestesiado.

Butantã, Caxingui, Vila Sônia.
O Vento circula arejando a cidade.
A obra ocupa várias paisagens,
Pendurada no ar.

Cego de vê-la.
Aviso de nada.
Varal dos sete panos pretos.
Retângulos suspensos

Entre postes e placas.
A rua causa cegueira.

Cotidianamente vistos seu código e sua linguagem,
Suas advertências e suas penalidades,
Apagam-se gradativamente
Em miopia, glaucoma e escuridão.
Na rua corre-se risco.

Tudo é frágil, fugaz, perigoso.
Todos estão de passagem.
Rápidos.
Cegos de vê-la.

Zona de redução de velocidade.
Proibida e fiscalizada e
Controlada e desacelarada.
Atenção.
Devagar.
Pausa.
Poesia de panos pretos
Pendurados ao sabor do vento.

A obra pode estar num quase-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

VII

Quando o sul encontra o norte,
São Paulo encontra Brande,
E uma tubulação orgânica
Liga os ventos dos hemisférios opostos.

Quando o sul encontra o norte,
Os tecidos se enrolam formando corpos
Que respiram ares de um e de outro.
Longe, na pequena e plácida paisagem setentrional,

O flutuante órgão de tubos nodulares
Aspira o ar do sul e do norte e soa como flauta mole.

Quando o sul encontra o norte,
No canal auditivo corre música de vento,
No intestino matéria ventosa é digerida,
Na trompa de falópio o óvulo é oco,
Cheio de ar, branco.

A obra pode estar num quase-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

VIII

Cilindro quadrado.
Geometria absurda plantada na
Miniatura cidade meridional. Austral
Paisagem quimera,
Faxinal do Céu.

Da conversa esticada
Na pele de rígidos quadrados,
Cubos soprados pelo vento,
Nascem tubos sem ossos.
Só o tecido excitado pela
Matemática sensual do
Vento que insufla o plano e incha o volume.

A obra pode estar num quase-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

IX

Roda de ribana.
Música redonda de vozes quadradas.
Blumenal. Praça de cidade do interior.
Teatro Carlos Gomes.

Riscado no chão o desenho de
Círculos concêntricos
Revolve o lugar.
Calmo redemoinho de vento.

Corpo circular de interior vazio.
Cubos soprados,
Arribados sobre arestas de madeira, qual
Ribanceira de um lago sem água e cheio de ar,
Dançam flutuantes na tranqüila praça
Uma ciranda de vento.

A obra pode estar num quase-lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra.

Goiânia, junho de 2008.

Originalmente publicado no livro De 2002 a 2005, de Renata Pedrosa. Edição da artista, São Paulo, 2008.