sexta-feira, 9 de julho de 2010

Carlos Sena: Apropriação poética do cotidiano



Carlos Sena: Apropriação Poética do Cotidiano

Há muito que a apropriação poética de objetos e imagens produzidas industrialmente tem sido uma estratégia empregada por artistas para formalizarem seus trabalhos. A partir dos anos 60 do século XX, com o agravamento da crise dos paradigmas artísticos fundados na noção de pureza das categorias e nas suas especificidades, essa prática foi distendida em inúmeras possibilidades de pesquisa.

Dessa crise emergiram novos princípios que passaram a orientar a produção de muitas das principais tendências da arte contemporânea internacional. Os estatutos foram alterados com a legitimação do legado duchampiano; a anti-arte que antes fora ataque à instituição arte (ao mesmo tempo em que a desvendava), foi conduzida à posição de fundamento desencadeador de outra modalidade de arte, que passou a necessitar da chancela do circuito artístico para legitimar-se, porque a dúvida ontológica sobre ser ou não arte tornou-se inalienável de sua constituição(1), e, também, porque o artista tornou-se um manipulador de signos, mais que um produtor de objetos de arte, como coloca Hal Foster(2).

O questionamento sobre os limites entre o que é e o que não é arte é enredado no processo de estetização do real, da vida e do cotidiano. A dúvida segue atrelada ao movimento de dilatação do campo artístico e colada às operações políticas de apropriação, agregamento e manipulação de objetos, representações e signos extraídos da crua realidade da sociedade industrial de consumo, onde os bens materiais e imateriais são determinados pela lógica da mercadoria.

A produção desenvolvida por Carlos Sena nos últimos anos opera dentro desse contexto, colocando-se entre aquilo que antes não era arte e que a partir de sua manobra passa a ser visto como tal, indagando os limites, manipulando elementos apropriados, dialogando com dispositivos do circuito e da instituição arte e realizando cruzamentos e hibridações entre arte e outras disciplinas. É uma produção mergulhada no presente, comprometida com os seus mitos e prazeres, mas de uma maneira crítica e irônica.

Ao apropriar-se da materialidade dos objetos de consumo e da visualidade da linguagem publicitária, apreende algo da essência do mundo contemporâneo: a descartabilidade que a tudo atinge, a fugacidade que afeta sujeito e objeto, a efemeridade que apaga a memória. Entretanto, sua manobra suspende o objeto da obsolescência, dá-lhe outra existência e concede-lhe uma memória, fixando pontos de contato entre o efêmero e o permanente, entre o vulgar e o singular.

Para tornar perdurável o efêmero, Sena dispõe de inúmeros procedimentos formais, que vão da desfiguração do objeto à sua apresentação quase imaculada, da articulação com elementos resgatados da cultura religiosa, como um modo de sacralizar o profano, até a convivência com simulacros da cultura kitsch. Tudo isso é submetido a tratamentos que estetizam e historicizam os objetos, uma vez que são derivados de práticas do circuito de arte e sobre elas se instaura um caráter reflexivo.

Carlos Sena desloca os objetos de uma condição direta e programada, implicada na ordem funcionalista, para uma condição indireta e ambígua, que requer a adjunção de técnicas da museografia e da prática do colecionismo como intermediadoras que colaboram para a estetização e para elevação desses objetos à categoria de arte. Suas instalações são como coleções de objetos semelhantes e, à medida que atuam como coleções, exigem a “observação disciplinada e o direcionamento da atenção para a organização consciente desse pequeno universo”, para que, então, o objeto seja “re-significado” (3). Opera com procedimentos de expografia, dando destaque aos processos de montagem e à arte de expor objetos, e mais, reafirmando as propriedades dos aparatos expositivos e da instituição museológica para subtrair o objeto à contingência do mundo trivial e torná-lo especial, potencializá-lo diante do olhar numa atividade exclusivamente expositiva, que vem, assim, sacralizá-lo e eternizá-lo.

O artista não escolhe objetos sofisticados, luxuosos e caros, e sim os banais, que circulam de mão em mão e penetram na intimidade doméstica sem que se perceba alguma beleza singular em suas formas. Elege propositadamente a trivialidade de flyers e cartazes, rótulos e embalagens esvaziadas, réplicas de gesso; enfim, objetos sem a imagem de valor elevado a eles agregada. Na acumulação e na sobreposição de objetos, sena encontra os processos para desenvolver o seu trabalho que ora tangencia a pintura, ora relaciona-se com o objeto, ora se configura em instalações.

Uma propriedade de suas operações é o cruzamento e a equalização de informações com distintas bases estéticas. É um raciocínio erudito baseado nas conquistas da arte contemporânea que preside suas elaborações plásticas, que gerencia os rumos dados aos processos herdados da sabedoria artesanal popular, e que organiza os dados extraídos do universo pop, contidos no material do qual se apropria. É uma densa, mas também humorada, reflexão sobre os problemas culturais de seu espaço e tempo, que leva o artista a posicionar numa mesma proposta bases estéticas diversas e até opostas, a reunir imagens heterogêneas como de uma vaca e de um caminhão de coca-cola.

(1) Ver Ronaldo Brito. O Moderno e o Contemporâneo: O novo e o outro novo. In: Arte Brasileira Contemporânea. Caderno de Textos 1. Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p. 5-9.
(2) Hal Foster. Recodificação: Arte, espetáculo, Política Cultural. São Paulo, Casa editorial paulista, 1996, p140.
(3) Marcos Moares. O Colecionador. In: Grupo de estudos em Curadoria. São Paulo, MAM, 1998, p. 42.


Divino Sobral

Este texto foi publicado no catálogo da exposição Carlos Sena: Objeto In-Direto. Goiânia, Museu de Arte Contemporânea de Goiás, 2004.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Lygia Pape: Tudo o homem devora. Entrevista por Divino Sobral



LYGIA PAPE: TUDO O HOMEM DEVORA*

A obra de Lygia Pape (Nova Friburgo/RJ, 1927 – Rio de Janeiro/RJ, 2004) atravessou toda a segunda metade do século XX e constituiu-se como referencial na formação da arte contemporânea brasileira.

A produção de Pape, iniciada nos anos de 1950, seguiu caminhos inesperados pesquisando diferentes possibilidades de constituição para o trabalho artístico, agregando procedimentos materiais, linguagens e sentidos os mais diversos.

Apaixonada por filosofia e especialmente pelo filósofo grego Heráclito, a artista dialogou com as transformações que os tempos foram lhe apresentando, e atenta às descobertas desenvolveu gravura, escultura, objeto, livro de artista, fotografia, instalação, cinema de artista, e propostas coletivas, encadeando todos estes trabalhos numa teia em que cada filamento encontra-se conectado ao outro.

O advento de sua trajetória dá-se com o Grupo frente (1953-55), que interessado na gramática geométrica e no racionalismo construtivo desembocou na formação do Grupo Concreto (1956). Lygia Pape acompanhou Hélio Oiticica (1937-1980), Lygia Clark (1920-1988), Amilcar de Castro (1920-2002) e Ferreira Gullar (1930) na ruptura com o Concretismo e na fundação do Neoconcretismo (1957-63), que sob a influência da fenomenologia inseriu na gramática geométrica elementos relacionados à expressividade, à subjetividade e ao contexto perceptivo do corpo.

A partir do Neoconcretismo, a produção brasileira ganhou a orientação vertical da pesquisa em campos experimentais, um impulso que alavancou uma multiplicidade de propostas e que Lygia Pape, com lucidez, soube acompanhar. Na inquieta trajetória da artista sucedem-se experiências que deslocam nosso conhecimento do plano e do espaço, da linha e da cor, da luz e dos materiais do mundo.

Um breve retrospecto de importantes obras de Lygia Pape é pertinente para que o leitor possa dimensionar a envergadura de sua produção.

Os “Tecelares” (1955) exibidos na exposição do Grupo Frente são xilogravuras de natureza construtiva em que a linha atua como protagonista. O “Balé Neoconcreto” (1958-59) consiste na movimentação de módulos geométricos no palco; em certo sentido, esta obra antecipa a proposta de Robert Morris (1931) dos módulos minimalistas de “Coluna” (1961). As investigações sobre as propriedades plásticas e conceituais do livro geraram obras como “Livro da Criação” (1960) e “Livro do Tempo” (1961), sendo esse composto por 365 partes diferentes, cada uma realizada a partir de um quadrado de madeira. A “Caixa de Baratas” (1967) como o próprio nome explicita guarda asquerosos insetos num comentário sobre a decadência e foi exibida na emblemática mostra que reuniu a vanguarda politizada do período pós golpe – Nova Objetividade Brasileira (1967). “Divisor” (1968) é um enorme tecido que suspenso pela participação coletiva de dezenas de pessoas; foi exibido numa favela, e muito tempo depois, em 1996, em New York.

Desde 1962 a artista começou a trabalhar com cinema, atuando como diretora, roteirista e designer gráfico. Nos anos 70, levou essas experi~encias em paralelo com pesquisas de apropriações e instalações. As “Tteias” (a primeira data de 1978) são construções de linhas que se estruturam no espaço como sutis coletoras de luz. “Objetos de Sedução” (1976) são trabalhos de apropriações que comentam a devoração sexual e os estereótipos dos comportamentos femininos/feministas na cultura machista. Os “Ovos de Vento” (1979) é uma instalação em que a luz ganha corporeidade diáfana na matéria leve e transparente.

Durante os anos 80, suas investigações e descobertas sobre a cor e a luz ganham visibilidade na exposição individual “O Olho do Guará” (1984). Segundo a artista “essas descobertas vão mais além do meramente sensorial: prevêem um espaço e um tempo interno – o mais profundo do ser – a sua poética” (In: O Olho do Guará. Catálogo da exposição homônima, Arco Arte Contemporânea, São Paulo, 1984). As obras neoconcretas de Lygia ganham novamente visibilidade com uma mostra individual na Galeria Thomas Cohn no Rio de Janeiro (1988).

Durante os anos 90, a artista tem sua obra reconhecida com elevada visibilidade. Continua a produzir trabalhos instigantes, irônicos e humorados como os “Amazoninos” (1990), que são objetos pendentes das paredes transitando entre bidimensionalidade e tridimensionalidade, e como as instalações “Luar do Sertão” (1995), realizada com pipocas e luz negra, e “Não Pise na Grana” (1996), executada com esta frase num canteiro de chicórias plantado na galeria. Na Bienal do Redescobrimento (2000) exibiu a obra “Manto Tupinambá” (2000) numa reflexão sobre os processos históricos e atuais de devoração cultural. A última exibição de Lygia Pape em um grande evento ocorreu na IV Bienal do Mercosul (2003), onde apresentou uma instalação com luzes e alimentos em grãos.

Lygia Pape esteve em Goiânia em 1993, quando veio fazer uma palestra durante o evento “Diálogos com o Tempo” no então Instituto de Artes da UFG (atualmente Faculdade de Artes Visuais da UFG). Nessa ocasião, concedeu-me essa entrevista, que foi publicada originalmente no jornal/catálogo da exposição Ato All, realizada também no Instituto de Artes (1995), e na qual Lygia também expôs trabalhos sobre papel. Em 1996, sob minha curadoria, participou da exposição “Circuito Nacional de Art Door em Goiânia” com uma obra em texto-imagem que escrevia com purpurina vermelha a frase que dizia: “Fome de tudo”.

Republicar esta entrevista é um modo de homenagear Lygia Pape no momento de seu falecimento, bem como de difundir o seu lúcido pensamento sobre sua obra, sobre a experiência neoconcreta e sobre os caminhos da arte contemporânea.

Lygia Pape entrevistada por Divino Sobral

DS – Lygia, você é uma artista plástica que tem formação filosófica. Quando se debate a dissociação arte e estética na atualidade, como você percebe esta questão?
LP – Eu nem chego a cogitar isto. Acho que você está encarando estética de uma forma acadêmica, no sentido da universidade. Esta dissociação pode ser feita com o esteticismo ligado ao belo. O que uso da filosofia é o pensamento, a possibilidade de criar e trabalhar conceitos. Isso a filosofia responde e apóia. A estética no sentido do belo grego não interessa mais. Mas, a estética como forma de pensar é presente hoje, mais que nunca, porque hoje as obras trabalham muito com a idéia de conceito. A filosofia ajuda a pensar a obra como elemento expressivo, e não apenas como relação formal.
DS – E quanto a existência intrínseca à obra de arte dos campos visuais e verbais como decorrentes um do outro?
LP – Toda obra é passiva de se escrever sobre ela; assim, toda obra é uma representação que funda uma crítica. Mas, há outra coisa que é o trabalho onde o elemento verbal está, de tal maneira, acoplado ao visual até vir a formar uma totalidade; aí verbal e visual se confundem. Uma obra sempre tem um significado, aparente ou não. Aparente não é literário nem ilustração de uma idéia. Mesmo o uso da palavra é dado como elemento visual.
DS – O desenvolvimento das questões envolvidas no processo de desestetização, morte da arte e anti-arte, necessita da incorporação de um campo verbal para sua expressão?
LP – Depende do trabalho. A obra da Jac Leirner realizada pela apropriação de materiais de aviões, pode se representar muito bem sem que se saiba muito de onde vem a matéria, pois a relação visual é bem resolvida. Entretanto, ela faz questão de contar que a cada viagem afanava um objeto de dentro do avião. Jac Leiner diz isto porque acredita que o fato vem acrescentar informações ao seu trabalho. Neste caso, acredito que funcione como uma duplicidade.
DS – Uma obra pode existir independentemente de uma veia temática, existir pelo puro exercício da linguagem, ou deve dialogar com temas que a sociedade está trabalhando?
LP – Penso que não deve ter tema, porque uma obra temática, de repente, passa a ser uma ilustração desse tema, se torna um trabalho menor. O artista trabalha dentro de uma poética. Sempre fico desconfiada com o cinema que discute isso ou aquilo. Tem uma coisa que é fazer um discurso ilustrativo, e tem outra coisa que é trabalhar estas questões fundamentais com muita força. Se ela não tiver essa profundidade e intensidade ela não é uma obra de arte, é uma tentativa frustrada de chegar a algum lugar.
DS – Como você observa as relações da arte com a cultura de massas?
LP – A sociedade de consumo de massa tende a alienar o homem. Nesse sistema a imagem é usada para induzir ao consumo conspícuo e gerar uma série de expectativas. Cria-se um clima erótico que leva simplesmente a consumir coisas. Nesse momento é que se começa a falar na morte da arte, que a arte não seria mais necessária ao homem. Mas eu creio que o homem continua a se expressar e que essa morte da arte não existe. A arte se transforma, surge uma nova expressão do homem a partir de novas tecnologias. Tudo o homem devora. Existe um lado da cultura de massas que tenta devorar o homem como elemento de consumo, como objetivação e coisificação. Mas, ao mesmo tempo, o homem tenta se expressar; então a arte é uma forma vital para o homem. Claro que ela não vai ser igual às outras formas artísticas; surgem outras e novas formas. Neste sentido, eu acredito que a arte não morre. A morte da cultura é um segmento que conclui seu ciclo de trabalho e, por exemplo, declara que a pintura está morta. Eu não sou radical. Encontra-se uma saída. As coisas se modificam, mas permanecem presentes.
DS – Dentro de certa contextualização histórica, você pertence à geração que passando pelo projeto construtivo, pautou-se na procura de valores propriamente plásticos, objetivos e concretos, e depois deslocou-se para um “concreto tornado semântico” (para usarmos uma expressão de Waldemar Cordeiro). A pragmática brasileira do Neoconcretismo, especialmente do trio Clark-Oiticica-Pape, rompe com esta disciplina e capta para a arte certo aspecto de anti-arte, onde os valores plásticos tendem a ser dissolvidos na plasticidade das estruturas perceptivas e situacionais: a arte pós-moderna de Mario Pedrosa. Como se processou esse deslocamento?
LP – Na realidade, nós estávamos fazendo rupturas o tempo todo. A Lygia (Clark) já tinha uma experiência bem maior que eu e o Hélio. Quando começamos a fazer uma obra concreta, construtiva, estávamos negando uma arte figurativa muito esclerosada. Então, naquele momento, era uma ruptura. Mais adiante, quando sentimos que a entrada de cabeça no racional e no matemático também havia se esclerosado, fizemos uma outra ruptura. Aí surge o movimento Neoconcreto, que vai introduzir os elementos de subjetividade, invenção e quebra das categorias. O elemento de liberdade dentro da arte. Quando a ruptura acaba, nós continuamos um processo de ruptura individual. Não trabalhamos mais em grupo e um não mais respondia pelo outro, mas continuamos. É uma questão de temperamento: há certos artistas que trabalham a mesma questão a vida toda, se renovando dentro dela; outros trabalham de modo mais sincopado, rompem com uma coisa e partem para outra. Os dois temperamentos são válidos.
No nosso caso, trabalhamos não em busca de um novo, essa coisa tão falada hoje, mas pela constatação das coisas saturadas, das coisas que já estão definhando. Nessa medida, procuramos revitalizar essa linguagem, rompemos com certas coisas e nos voltamos para outras. O Mario fala, de uma forma muito bonita, que é o “exercício experimental da liberdade”, é este exercício que possibilita inventar novas linguagens.
DS – Estes conceitos refletem-se em objetos e situações como “Roda dos Prazeres”, “Divisor”, “Objetos de Sedução” e até mesmo nos recentes “Amazoninos”. Me parece que a experiência fenomenológica, a participação coletiva e direta como realização ambiental é o eixo estrutural e a estratégia de inserção no real, fundamentais na sua obra. É possível colocar isto?
LP – Acho que sim. Mas ao mesmo tempo eu ando muito, sempre olhando as coisas e me interesso por muitas delas. Assim me alimento visualmente. Isto, claro, reflete no meu trabalho Já trabalhei muito com o lado arquitetônico, não no sentido da construção, mas da descoberta de novos espaços significativos; me interessei pela arquitetura indígena; pela favela e pelo uso da cor nos subúrbios, etc. Estou sempre fazendo uma pesquisa que vai se agregando ao meu trabalho. Algumas obras têm como característica a ausência de unidade, não é um trabalho de autor. A “Roda dos Prazeres” eu criei, mas nada impede que qualquer pessoa experimente a obra. “Espaços Imantados” são sugestões que dou ao espectador para ele também descobrir e criar seus espaços.
DS – Sua obra nos requer para sua observação uma disponibilidade para o jogo, para as ambigüidades significativas e o envolvimento sensorial. É um jogo proposto pelo despistamento, onde você procura não se caracterizar como artista; mas a estrutura se mantém neste processo bastante mutável, relacionado à idéia de devir. Como você cria este jogo?
LP – Eu gosto de ambigüidade. Não gosto da arte fechada em si mesma. Detesto verdades absolutas. Não é que seja pessoa ambígua, sou muito clara naquilo que quero dizer; mas, ao mesmo tempo, tenho horror de ser catalogada, de ficar dentro de determinado rótulo. Não faz parte da minha natureza. Tanto que o pré-socrático que mais amo é Heráclito, o fluir perene, o rio que nunca banha a mesma margem, ou a imagem do foco em constante mutação. Me identifico muito com o Heráclito por causa desse fluir.
O Helio Oiticica uma vez me disse uma coisa interessante sobre isso que você colocou muito bem, que tem um fio condutor como se eu tecesse uma rede que vai levando todas essas experiências. Acho importante na arte esse espaço de abertura para o outro; à medida que crio uma ambigüidade, estou permitindo a você também participar do trabalho à sua maneira e não de uma única que eu determinaria. Abomino um ser fechado, duro, absoluto, imóvel e imutável.
DS – Como você recebe a negação, por parte do Ferreira Gullar, dos procedimentos inventivos do Neoconcretismo, e o que você tem a dizer sobre a relevância das obras de Oiticica e de Clark para a atualidade?
LP – Eu fico profundamente triste com o que o Gullar diz, porque ele deveria ter dito isto quando eles estavam vivos. Na época havia um grande entusiasmo e o Gullar também participava desse entusiasmo. Até admito que se refaçam as opiniões , mas porque negar uma coisa que não havia sido negada até agora? Abandonar o próprio trabalho é um direito. Essa análise do Helio e da Lygia está chegando um pouco tardia, principalmente porque o Gullar foi amigo pessoal dos dois e escreveu muita coisa entusiasmada sobre eles.
A obra da Lygia está mais oculta, talvez porque não tenha um projeto como o HO. A obra do Helio está em progresso, ela pode te alimentar. A obra se mentem viva no sentido de ser alimentadora e nisso creio que seu trabalho responde muito bem, assim como o de Lygia. O Helio participou intensamente de exposições, lançou livros, etc. E depois de sua morte já se fizeram muitas exposições. A obra da Lygia é também profundamente importante e muito significativa. Está na hora de se pensar uma grande exposição sobre ela. Foram dois artistas fundamentais na arte brasileira.

*Esta entrevista foi publicada pela primeira vez no jornal-catálogo da exposição Ato All, Instituto de Artes da UFG, Goiânia, 1995; teve uma segunda publicação na Revista Visualidades do Programa de Mestrado em Cultura Visual; Vol. 2, nº1, Jan-Jul, 2004, Faculdade de Artes Visuais da UFG.

Um estado de reinvenção

UM ESTADO DE REINVENÇÃO

Este texto pontua algumas questões que considero proeminentes no conjunto de obras dos artistas representados pela Galeria Arte em Dobro. Seu propósito é estabelecer alguns campos de reflexão (sem pretensão conclusiva) que permitam ao leitor tanto aproximar-se de processos lingüísticos e poéticos desenvolvidos por esse elenco, quanto aproximar-se de procedimentos desenvolvidos pela produção contemporânea brasileira em sentido mais amplo – uma vez que esse conjunto representa um recorte no rico quadro da produção nacional.

Naturalmente, tal recorte é produto da seleção e dos critérios da galeria, que assim estabelece um inventário de questões formais e poéticas que estruturam seu perfil. É possível enxergar um possível perfil da Arte em Dobro a partir das suas escolhas e da formação de seu elenco: um conjunto que engloba artistas de diferentes gerações, dos anos 80 à atualidade, comprometido com a diversidade das modalidades, dos processos técnicos e dos propósitos poéticos contemporâneos, com a estratégia de descentralizar o olhar sobre a produção nacional – mesclando produtores radicados no eixo Rio-São Paulo e estados do interior do país, como Goiás e Minas Gerais – e com o compromisso de incentivar a inquietação que marca nosso tempo numa atitude de aposta no presente e no futuro da arte brasileira.


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A arte contemporânea está empenhada na continua reinvenção dos modos de ver o mundo que nos cerca, com os acontecimentos, situações e objetos do cotidiano. O interresse pela vida, pelo que pode traduzir o humano no presente, resulta em indagações sobre nossa existência diante de um mundo globalizado, violento, instável e em crise permanente.

A produção atual perpetra indagações sobre a nossa forma de viver e, ao mesmo tempo, procura responder a tais questionamentos. A resposta a essas indagações encontra-se na reinvenção do cotidiano que os artistas promovem. Os parâmetros de relações interpessoais, os códigos reguladores do corpo e dos objetos, dos valores políticos, éticos e estéticos são deslocados para um campo interno de questionamentos e revisões, e nesse sentido os trabalhos passam a atuar como dispositivos culturais que acionam um vetor negativo em relação à lógica perversa da crise do mundo e do sujeito.

Em operação dupla de reinvenção da vida e da arte, os objetos produzidos em escala industrial e imagens de segunda geração, produtos da cultura urbana de consumo diluídos no cotidiano, são raptados de suas funções e deslocados para o campo da arte, em operações, às vezes simples e outras complexas, que conferem diferentes campos de plasticidade e de significância ao material empregado. Os artistas passam a trabalhar como editores, alterando elementos originais, agregando outros extraídos de esferas visuais e conceituais antagônicas, criando obras híbridas pela articulação de inúmeras fontes e procedimentos artísticos ou “não artísticos”. O objeto ou a imagem é empregado como módulo repetido, justaposto, alternado, acumulado, encaixado em inúmeras possibilidades de linguagens e que resultam tanto em propostas bidimensionais quanto tridimensionais, que operam pelo humor ou pela ironia.

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Um segmento de artistas mantém apreço pelo ornamental, pelo arranjo formal que busca oferecer prazer estético ao espectador, conduzindo pesquisas sobre maneiras de posicionar distintas linhagens ornamentais no contexto da arte atual. Desenvolvem trabalhos que restituem o papel da fruição retiniana, que pontuam a participação da forma, da cor, da textura, da luz e da sombra, mas, sem suprimir a reflexão conceitual no contato com a obra.

O uso diversificado do ornamento parece ser estratégia usada para seduzir e enredar o olhar do espectador, além de colocar em debate miríades de referências culturais do Brasil ou de outros locais. A origem do artista, os processos de elaboração de objetos e ornamentos presenciados em sua infância e guardados em sua memória visual e afetiva são revividos com dimensão estética e antropológica, usados como matéria da constituição de suas obras, convivendo com outros processos enformados pelos raciocínios das artes moderna e contemporânea internacional, que aqui adquirem fala singular.

A amplitude destas pesquisas passa pela suntuosidade da decoração barroca, pela exuberância da estamparia, pela referência aos ornamentos arquitetônicos e gráficos de muitos estilos, pelo universo do gosto kitsch e pela singela beleza embutida na rica variedade de artefatos das culturas popular e rural. Quaisquer das opções tomadas pelos artistas potencializam no processo de formação da obra a plasticidade de materiais os mais distintos, dos tradicionais aos mais experimentais. Outro dado a ser notado é que juntamente com o aspecto ornamental, há também o cuidado extremo com a fatura técnica das obras. Em alguns artistas apresenta-se o apego ao exercício da manualidade e as técnicas artesanais (algumas imemoriais) herdadas da sociedade pré-industrial, e noutros ocorre a investigação de técnicas eletrônicas típicas da revolução tecnológica hodierna. Mas, nos dois casos, existe certa dose de ludismo que torna os trabalhos ainda mais atraentes.

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As relações entre os campos plástico e verbal estão também na pauta de alguns artistas do elenco. Se antes, o aspecto literário foi combatido por segmentos rigidamente formalistas do modernismo em função da autonomia abstrata dos meios visuais, hoje ele é recuperado para a criação de obras de natureza dupla, que dão novos encaminhamentos e implicações ao trabalho do artista plástico com a linguagem verbal, seja pela inserção de palavras na imagem seja pela apropriação de textos alheios.

A auto-suficiência dos expedientes visuais é como que indagada pela presença de escrituras na constituição das obras. A junção dos dois campos alimenta tensões e cria terceiras margens de leitura. Isto interessa aos artistas que tentam reunir o maior número possível de recursos lingüísticos e técnicos para a elaboração de seus trabalhos repletos de tensionamentos e de polissemias. O amálgama plástico literário é conduzido em função do sentido que se deseja dar à obra e da relação que se quer manter com o espectador. Experiências de simbiose passam a ser trocadas entre ver e ler, ações que acontecem simultaneamente levando aos muitos ajustes e desdobramentos.

Inúmeras formas de uso de textos são desenvolvidas por esses artistas, ora numa espécie de poesia visual intensamente plástica que potencializa e distende o universo da página e do livro para tornar-se desenho no espaço plano, ora transcende esses suportes e torna-se matéria de objeto ou de instalação no espaço real. O método textual adquire outros contornos e a palavra é lançada em outros jogos de significância em narrativas sobre a memória, em diários que documentam fragmentos da vida cotidiana, em comentários que aspiram dar sentido diacrítico às coisas do mundo e em epístolas cujos destinatários somos todos nós.


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Um outro agrupamento de artistas tem se dedicado a investigar processos e registros fotográficos ou novas tecnologias de manipulação e de edição de imagens para constituírem obras que dependem de outras linguagens, que não a fotográfica, para se consumarem. O caráter pictórico que atravessa parte desta produção, além de expressar a recusa à visão documental, indica a contaminação com modos de ver elaborados pela história da pintura a partir da segunda metade do século XIX. As questões internas da fotografia – como enquadramento, foco, iluminação e gradações cromáticas – são desviadas da ortodoxia em função de raciocínios poéticos e estéticos. De outro modo, a fotografia também tem sido manejada quase como registro de experiências criadas e vivenciadas pelos artistas como situações performáticas, e que instauram reflexões sobre os problemas do corpo, da identidade do eu e do outro, e sobre o estranhamento de estar no mundo.

Hoje, os recursos da informática disponibilizam muitas ferramentas para o processo de editoria de imagens de segunda geração na elaboração de trabalhos cuja definição em categorias é complexa. Novas técnicas de edição e de impressão em suportes que antes serviam apenas à fotografia têm possibilitado a realização de obras que transitam entre as tipologias da imagem reproduzida, sem acharem ainda os seus lugares, não são nem fotografias nem gravuras. A prática do colecionismo de imagens está embutida nos manobras dos artistas-editores. A partir dela se forma um inventário de representações e ícones, tanto do passado quanto do presente, que é depois destituído de seu significado original e lançado em outras experiências, por meio de expedientes digitais de montagem, colagem, acumulação, repetição ou associação, que além de alterarem a plasticidade das imagens potencializam significados inesperados.

Divino Sobral
Goiânia, fevereiro de 2007


Este texto foi publicado no catálogo da Galeria Arte em Dobro na SP Arte 2007. Rio de Janeiro, 2007.

Lugar Plano


Foto da montagem com obras de Nina Moraes, Cabelo e Carlito Carvalhosa.

Lugar Plano

A exposição apresenta um conjunto de trabalhos que se formam sobre diversos tipos de suportes essencialmente bidimensionais e planos, e, neste sentido, pretende promover reflexões sobre as práticas de manutenção e de atualização dos suportes e das categorias tradicionais do desenho, da gravura, da pintura e também da colagem .

As pesquisas atuais destas linguagens e suportes se distanciam daquelas colocadas pelo moderno. Numa reflexão mais alargada sobre o espaço plano na arte moderna, vemos que a corrente formalista, dominante no debate central, posicionou-se sobre o modelo de Clement Greenberg do fundamento da autonomia das linguagens artísticas, baseado nas propriedades de cada meio artístico e na potencial ”pureza de sua autodefinição”. As limitações dos meios de que a pintura se serve – a superfície plana, a forma do suporte, as propriedades plásticas das tintas – foram enfocadas como dados que fundavam a especificidade de sua linguagem. A recusa completa a representação de objeto ou espaço tridimensional no interior de um campo bidimensional, o desembaraço da função mimética realista e o repúdio ao literário, característicos das muitas pesquisas abstratas (1) do Séc. XX, geraram o aplainamento dos trabalhos e consequentemente do olhar. Assim, a superfície plana foi enfocada como a única condição da existência da pintura, e também do desenho e da gravura, sua principal distinção das outras linguagens artísticas. As pesquisas modernas pretenderam fundar e gerir suas linguagens num processo crescente de ocupação bidimensional, essencialmente.

As transformações ocorridas a partir dos anos 60 com as rupturas radicais das práticas desmaterializadas, com o experimentalismo de uma profusão de novas possibilidades tecnológicas para a constituição de imagens, com o uso do corpo como suporte e motivo da obra, e, sobretudo, com a preponderância do aspecto conceitual da arte, decorreram em um lugar menor às questões eminentes do modernismo formal e às questões das linguagens então chamadas de tradicionais. As pesquisas mais arrojadas ao prescindirem do objeto artístico poético para investigar o circuito da arte, o contexto sociológico ou antropológico da arte, as ligações das instituições com os sistemas de poder, ao adotarem estratégias documentais de seus trabalhos, segregaram as práticas do plano, de pintura, desenho ou gravura, para a periferia do debate artístico, e inúmeras vezes publicaram atestados de óbito da pintura.

Apesar dos epitáfios, a produção dos anos 80 trouxe novamente as discussões sobre as linguagens tradicionais e o plano para o centro do debate. A exploração do amplo repertório do banco de imagens da história da arte, da cultura de massas e das técnicas populares, subsidiou a configuração de trabalhos pictóricos que injetavam aspectos singulares no campo do conhecimento visual. O diálogo com a história, os empréstimos, releituras, citações e apropriações dos artistas dessa geração conformavam-se através de amplos suportes, em pesquisas cromáticas abertas e destemidas, na exploração dos inúmeros códigos gestuais e na utilização de procedimentos plásticos abstratos para o tratamento de estruturas figurativas. Nos anos 80, governados pelo conceito de Simulacro, retornaram o humor, a paródia, a conexão com o literário e com os temas retirados do cotidiano e dos meios de comunicação de massas. Os trabalhos superaram a necessidade purista formalista do modelo moderno, e assumiram uma situação impura, contaminada com muitos extratos e disciplinas, ganharam contornos híbridos e passaram a discutir com temas da realidade e da vida humana.

Durante a última década do Séc. XX, o interesse pela linguagem da pintura arrefeceu em função das investigações de linguagens tridimensionais como a instalação, o objeto e operações de escultura, e também em função do crescimento das explorações com fotografia, vídeo e outras mídias tecnológicas. Mas esse arrefecimento não implicou na obsolescência das linguagens planas tradicionais. A década de 90 registrou um comportamento agregador de pletoras de questões e linguagens artísticas: se uns artistas distenderam a exploração das especificidades da linguagem, outros deslocaram suas reflexões do meio para o conteúdo de seus trabalhos, e assim rechearam-nos com referências ao corpo, a memória individual e coletiva, a identidade e as questões de gênero e de etnia, a história e suas múltiplas narrativas. O uso de desenho e gravura deixou de ser enfocado com menor relevância e ganhou destaque na produção de inúmeros artistas por todo o país. É importante salientar que muitos desses artistas transitaram entre os diferentes espaços, bi e tridimensional, entre diferentes suportes e materiais, e tal movimento começou a implicar numa situação mais complexa de hibridação das linguagens.

A partir dos anos 90, o cenário contemporâneo passou a ser permeado pela multiplicidade e pluralidade das questões colocadas pelos artistas sobre o plano. Hoje a arte brasileira está num processo de internacionalização de suas problemáticas poéticas e lingüísticas, mas, esse processo não implica no alheamento das tradições plásticas e técnicas existentes no país e que decorrem de sua própria formação e história. A relação de tensão do plano no contexto hodierno é apontada por Tadeu Chiarelli como uma característica da arte nacional formada ao longo do conjunto de obras de miríades de artistas (2). Uma situação de tensionamento que aflige não só o exercício de pintura, gravura ou desenho, mas também a própria escultura que é atravessada por distensões planares.

A exposição traz um recorte no extenso panorama da produção brasileira que opera com a atualização das possibilidades de utilização do espaço plano dos suportes tradicionais – papel, tela e tecido –, que utiliza o campo dos suportes tornando-o flexível e elástico para suportar a manobras de hibridação das linguagens, onde a pintura pode deslizar para o objeto, o desenho recair sobre a gravura, a colagem configurar-se como pintura, o desenho constituir-se como pintura, a imagem turvar-se pelas palavras; onde toda sorte de materiais pode ser empregada na fatura da obra e o ofício e a artesania podem ser valorizados, e onde a elasticidade poética alcança uma envergadura que vai das narrativas particulares, baseadas nas memórias e experiências vivenciais de seus autores, à apropriação de elementos visuais anônimos retirados do universo cotidiano, até as propriedades semânticas do gesto ou da cor.

O lugar plano delimitado pelas bordas dos suportes e pela planura das paredes, constitui o lugar onde os artistas se posicionam para pronunciar suas falas-visuais ao mundo, para tecer seus comentários sobre a arte e a vida, simultaneamente. Para estabelecer seus métodos e estratégias de contato e comunicação com o espectador segundo as formas de existência plástica possíveis unicamente sobre a superfície.

1- Clement Greenberg. A Pintura Moderna. In: Gregory Battcock. A Nova Arte. Perspectiva, São Paulo, 1975, P. 97.
2- Tadeu Chiarelli. Plano em Repouso / Plano em tensão: Hildebrand e a Arte Contemporânea Brasileira. In: Arte Internacional Brasileira. Lemos Editorial, São Paulo, 1999, Págs 93-97.


Divino Sobral. Goiânia, 2006

Este texto foi publicado no folder da exposição Lugar Plano realizada no Espaço Cultural Contemporâneo, Brasília, 2006.

Paulo Rezende: Os varais e a paisagem pintada pelo povo





Paulo Rezende: Os varais e a paisagem pintada pelo povo


“Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor,
o primeiro varal de roupa
festeja o sol que vai subindo,
vestindo o quadradouro
de cores multicores.”
Cora Coralina


Paulo Rezende é um dos nomes referenciais da fotografia publicitária em Goiás. No início dos anos 80 trocou Brasília por Goiânia, abdicou do curso de Arquitetura na UnB e passou a se dedicar ao Curso Livre de Fotografia da Faculdade de Arquitetura da UCG. Logo depois, em 1986, decidiu investir profissionalmente na carreira de fotógrafo abrindo estúdio próprio. Em mais de vinte anos de atuação formou um acervo que supera o volume de dez mil imagens sobre a região centro oeste, e além de desenvolver inúmeros trabalhos publicitários, produziu fotos, tratou e restaurou imagens para publicações importantes como os livros: “Goiânia 60 anos: Um passeio pela História” de Eloí Calage; “Veiga Valle: Seu ciclo criativo” de Elder Camargo de Passos; “Identidade art déco em Goiânia” de Wolney Unes; “Goiânia: Uma utopia européia no Brasil” de Tânia Daher; entre outros. Paulo Rezende também se interessou pela linguagem cinematográfica realizando (como diretor, roteirista e fotógrafo) dois curta-metragens, ambos exibidos primeiramente em 2007: “Seu Ênio, Pirenópolis e os fuscas”, obra de aspecto experimental selecionada para os festivais de cinema de Tiradentes e de Ouro Preto (MG) e para a Mostra ABD-GO no IX FICA; e “Um dia no Centro” que foi ganhador do Prêmio de Melhor Direção no Goiânia Mostra Curtas – Mostra Goiás.

Nos últimos cinco anos, Paulo Rezende vem trabalhando um ensaio sobre os varais de roupas dispostos na paisagem. Nesta investigação os elementos da linguagem fotográfica, como a opção pelos dispositivos, as decisões sobre os problemas de enquadramento e de foco, o escalonamento dos planos, o uso da iluminação natural, são manobrados com abordagem documental levantando uma série de questões e problemas sobre o varal em suas várias implicações sociais e estéticas. A linguagem é documentarista, mas tem o tom de uma operação que se aproxima do registro antropológico visual, buscando por meio da imagem o entendimento do locus vivencial em que se travam as relações humanas e sociais observáveis a partir de uma tipologia de varais que é definida pelo olhar estético sobre a cor, o movimento, o ritmo, a luz, a sombra, pelo ambiente fotográfico que por um instante se forma no quadro da realidade e que o fotógrafo num gesto flagrante captura. A fotografia ao fixar a imagem da realidade abre reflexões não apenas sobre a aparência, mas também sobre as múltiplas camadas que compõem esta mesma realidade, na qual está inserida o varal.

O ensaio de Paulo Rezende mostra varais suspensos nas paisagens de um país marcado por contrastes sociais e grandes diferenças entre centro e periferia, por má distribuição de renda e exclusão dos padrões de cidadania. Varais registrados na paisagem periférica, seja na grande cidade, seja nas cidades do interior de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão ou Bahia, seja num assentamento de sem-terra, seja nas ocupações rudimentares e solitárias das quebradeiras de coco no sertão bruto, seja na comunidade Calunga, seja nas aldeias indígenas. No roteiro de viagem alinham-se Goiânia, Pirenópolis, Xambioá, Imperatriz do Maranhão, Pantanal mato-grossense, Itaguatins, Porto Nacional, Ilha do Bananal e Ilha de Boi Peba. Em todos estes locais seu olhar procura as beiras, as paisagens periféricas de “onde o Judas perdeu as botas”; zonas formadas na margem do capitalismo, localidades em que as grandes distâncias dos centros promovem o isolamento e ressaltam a contínua carência dos bens comuns relacionados à habitação, saúde, trabalho, educação, transporte, etc. O ensaio ao indiciar varais dependurados nas paisagens da periferia da grande cidade ou na periferia do país que é o ermo sertão, mostra também imagens que falam do Brasil dos que resistem às adversidades.

A exposição dos varais nos quintais e arredores das casas é uma prática das classes sociais mais pobres ou de comunidades isoladas culturalmente (caso dos índios e dos Calungas). No meio urbano, sobretudo nos bairros de classes mais abastadas, o varal é um elemento ausente na paisagem. O local onde é fixado denuncia o padrão e a qualidade de vida de seu proprietário. Os ricos possuem residências planejadas, funcionais, confortáveis e estéticas, onde a área de serviço destinada à lavagem e secagem das roupas adquiriu um contorno arquitetônico autônomo do espaço de convivência social, semelhante a uma câmara fechada, tornou-se área não nobre onde privacidade e discrição almejam a invisibilidade. Já a população pobre lava suas roupas e estende seus varais fora de casa, intervém na paisagem por falta de espaço físico e de adequado planejamento na construção de suas residências. A precariedade se acirra gradativamente quando se passa das pequenas casas edificadas nas marginais e nos subúrbios das grandes cidades aos casebres interioranos, das choupanas de pau-a-pique ao rancho de palha solitário no meio do mato. Nestes ambientes a redução do espaço doméstico impele o que não cabe dentro de casa para o limite, para fora, para o quintal.

O quintal é amplamente utilizado pela população pobre como área de serviço e de lazer, local de convivência familiar, de brincadeiras de crianças e de contatos entre vizinhos; espaço de interação entre pessoas, animais domésticos e elementos vegetais. No entorno das casas os varais suspensos nos quintais ampliam o uso do espaço doméstico e provocam intervenções estéticas na paisagem redesenhando-a e colorindo-a. O varal participa da categoria de soluções desenvolvidas pelo povo brasileiro a que chamamos de gambiarra, um procedimento técnico improvisado que revela a precariedade estrutural do país e que responde às necessidades imediatas e à falta de recursos da população carente. Improvisações populares, construções simples geralmente feitas com arame farpado ou fios diversos esticados em estacas de madeira; de tão precário, muitas vezes o varal ocupa a própria cerca que divide um quintal do outro, ou o quintal da rua ou de uma rústica estrada, e até mesmo se oculta no meio do mato. O varal também participa do imaginário das simpatias populares: “Criança com caxumba não pode passar por baixo do varal, senão a caxumba desce”, dizem os mais velhos para evitar que os meninos doentes saiam para o quintal.

Roupas lavadas expostas nos varais para secar ao sol sob a poeira do ambiente à volta. Viradas pelo avesso, revelam insolitamente as entranhas do vestuário para evitar o desbotamento. Um varal de corpos. Roupas são simbolicamente duplos corporais, possuem uma relação de ergometria com quem as usa, traduzem a intimidade, o cheiro, a idade, o sexo, a profissão, o gosto, a personalidade de seu proprietário. As roupas no varal desvelam a privacidade de uma família no espaço público ao movimento do vento: quantos filhos, o tamanho da família, quantos idosos, as festas, se ganhou mais ou menos dinheiro... Dependuradas nos varais, as roupas ao avesso mostradas pelos fundos para quem quiser ver, contam histórias e estórias sobre os muitos personagens habitantes das humildes casas. A pobreza não permite muita discrição.

Um personagem que não é mostrado no ensaio de Paulo Rezende, mas que inevitavelmente o atravessa é a lavadeira. Afinal, o varal como acontecimento plástico na paisagem é organizado por ela ao estender as roupas segundo seus critérios particulares. Porque dependurou as roupas naquela ordem? Como combinou os tamanhos das peças e os formatos? Como distribuiu as cores? As roupas foram lavadas nessa mesma ordem? E depois, crescem na imaginação divagações sobre os modos de se lavar roupa, desde a lavagem nas águas do rio até a máquina de lavar; e, por fim, surge a lembrança das antigas lavadeiras que estendiam seus varais com cantigas apaixonadas.

Os varais mostrando as cores que vestem o povo brasileiro pintam a paisagem com uma paleta diversificada e popular, com a exploração de todas as cores suspensas contra o céu azul, contra a mata verde, contra o dourado do mato seco, contra o mar azul esverdeado, contra o prateado do rio, contra o terreiro avermelhado. Os varais das periferias são compostos de roupas populares (“de costureira” ou “de feira”, sem grife) de cores exuberantes, ludicamente mescladas, dispostas em combinações ou em contrastes, como bandeirolas que enfeitam o dia de festa. Os varais possuem uma alegria que se esparrama pelo espaço como celebração do sol e do vento, da luz e do movimento. Os varais dos índios são absolutamente coloridos e vibrantes, com predomínio de vermelho, alaranjado e amarelo, quentes, intensos e luminosos. Alegria da cor que somente o povo sabe sentir e exprimir.

Varais pintando as paisagens longínquas, nos bairros periféricos, nas cidades isoladas e nos ermos quase esquecidos, onde a comunicação com o mundo se faz no máximo pela antena parabólica, pela televisão; onde o transporte é feito pela velha carroça, pela motocicleta ou a bicicleta que rasgam as distâncias em um tempo sem urgência. Paulo Rezende se posta diante deste universo, como um coletor errante, fotógrafo viajante, que exercita seu ponto de vista colhendo imagens cuja vocação é refletir sobre aspectos da realidade brasileira.

Divino Sobral

* Este texto foi publicado na Revista UFG, Universidade Federal de Goiás, Dezembro 2009, Ano XI nº 7