domingo, 30 de agosto de 2009

Quando o Vento Sopra no Lugar - Poema de Divino Sobral sobre intervenções de Renata Pedrosa


Obra de Renata Pedrosa. Roda da Ribana. Intervenção na Praça Carlos Gomes, Blumenal, SC. 2003.

QUANDO O VENTO SOPRA NO LUGAR


Poema de Divino Sobral

A obra pode estar num quase-lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra.

Lugar-nenhum,
Sem pertencimento ou fios de ferro e cobre fincados no solo,
Nem afetos guardados no interior das paredes
de um cubo soprado pelo vento.
Localidade concreta e funcional.
Extrativismo espacial.
Perspectiva não vista no ir e vir
Cotidiano, pragmático, apático, apoético.
Sem mistério, sem leveza, sem nuance.
Quase-lugar, ponto de vista
Onde o vento ainda não sopra.

A obra interfere
Onde a velocidade é distância,
Onde a vastidão é obstruída,
Onde o relógio desregula e acelera
O ritmo da produção e do consumo.
A cidade, corpo indigesto, intoxicado,
Cheio de tudo e de solidão e de indiferença,
É o quase-lugar onde a obra se assenta
E faz o vento soprar.

A rua
Passagem, percurso,
Trajetória diária e despercebida,
Terreno de todos e de ninguém.
Quase-lugar,
Passagem não vista,
Paisagem que por excesso cega.

Limite do território a ser ocupado.
Disputa pelo espaço,
Entre o cálculo e o acaso,
Entre o próprio e o alheio,
Entre o nominável e o anônimo.

A obra pode estar num quase-lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra.

O lugar diz o que a obra é.
É seu cúmplice e seu assunto,
Seu suporte e sua matéria,
Sua substância e sua localização.
A partir do lugar a obra
Diz da crise do que pertence a todos:
Diz da rua e diz da praça,
Diz do mobiliário urbano e diz dos monumentos.
Diz do que não pertence a ninguém.
Apossamento sem escritura.
Efêmera intervenção.
A obra diz o que o lugar é.

Escolher,
Ocupar, interferir,
Fazer fluir, leve, aéreo.
E com gestos mínimos e econômicos,
Traçar um risco poético na paisagem,
Colher o movimento do vento.

O quase-lugar que a obra ocupa
Verte-se em lugar.
Poético sopro de vento.
Uma só vez.
Breve existência.

A obra pode estar num quase lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra.


II

Retirada, resta ausência.
Sobra a imagem do que foi e
A sabedoria de que na cidade nada perdura, e que
Um palimpsesto se escreve com palavras impermanentes.

A obra pode estar num quase-lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra,

Ainda que por poucos dias,
Apenas por algumas horas.

Depois, é só uma fotografia que desbota e envelhece.

III

Maior que um.
Maior que amnésia.
Apossar do resto esquecido do monumento,
Da fonte de águas secas,
Paradas num tempo que há muito não existe.

Peças de madeira alinhadas, ajuntadas,
Presas por tecidos amarrados com cordas.
Paredes moles de um cubo vazio,
Soprado pelo vento.
Suspenso e alvo varal,
Balança na estação do tempo que foi,
Ao som da música, frente à Sala São Paulo.

Maior que um.
Diante do monumento,
Arquitetura de outrora,
O quadrado já existia riscado no chão.
Quem sabia de sua presença?
Quem se lembrava do seu passado?
Qual era mesmo a sua função?

Águas aéreas ondulam.
A obra faz ver o vento do lugar.

A obra pode estar em qualquer não-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

IV

Corredor.
Artéria e veia revestidas de asfalto.
Trânsito e movimento.
Aqui pessoas, ali ônibus, acolá veículos particulares.
Linha de contorno divisando o tráfego nervoso.
Separando coletivo de individual.
Tentando ordenar o caos.

Linha imprecisa, parede férrea
Demarcando limites e velocidades,
Caindo no centro da pista.
A verticalidade horizontaliza-se.
O não-lugar inclina-se a lugar nenhum.
Baldio, não diz nada a ninguém.
Silencia. Rói sua própria ruína.

Colher o vento para aliviar
A pressa e a demora e a espera.
Espera enquanto vê o vento passar.

Corredor,
Passagem com esqueleto recoberto de tecido.
Divisor
Pano esvoaçante que ondula sobre
Ferro vergado, caído entre pontos de ônibus na Francisco Morato.
Uma parte da cidade desmorona sob frágil cortina branca
Que acoberta a férrea parede.
Página vazia estendida na rua
Soprada pelo vento.
Atadura que não se fixa.

A obra pode estar em qualquer não-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

V

Amarelos e cobertos.
Avenida Santo Amaro.
Alteração na paisagem.
O corredor se renova.
Trânsito intenso.
Pontos de ônibus amarelos e caducos e foscos
Substituídos por novos e vermelhos e brilhantes.

Pontos de ônibus sem cobertura,
Vazios, sem passageiros.
Mobília urbana aposentada,
Quase morta.

Panos pretos pendem
Das vigas envelhecidas,
Pesados como cobertores,
Enlutados, discretos, imóveis.
Transformações são sepultamentos de algo que passou.
A cidade mata seu passado.

O vento sopra morno, quase parado.
Mas ainda assim sopra.
O pano preto pendurado,
Parece cair e não flutuar.

A obra pode estar em qualquer não-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

VI

Cego de vê-la.
Rua que de tanto passar não vejo mais.
De tão rotineira, esquecida.
Paisagem sem paisagismo,
Vista vendada,
Olho anestesiado.

Butantã, Caxingui, Vila Sônia.
O Vento circula arejando a cidade.
A obra ocupa várias paisagens,
Pendurada no ar.

Cego de vê-la.
Aviso de nada.
Varal dos sete panos pretos.
Retângulos suspensos

Entre postes e placas.
A rua causa cegueira.

Cotidianamente vistos seu código e sua linguagem,
Suas advertências e suas penalidades,
Apagam-se gradativamente
Em miopia, glaucoma e escuridão.
Na rua corre-se risco.

Tudo é frágil, fugaz, perigoso.
Todos estão de passagem.
Rápidos.
Cegos de vê-la.

Zona de redução de velocidade.
Proibida e fiscalizada e
Controlada e desacelarada.
Atenção.
Devagar.
Pausa.
Poesia de panos pretos
Pendurados ao sabor do vento.

A obra pode estar num quase-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

VII

Quando o sul encontra o norte,
São Paulo encontra Brande,
E uma tubulação orgânica
Liga os ventos dos hemisférios opostos.

Quando o sul encontra o norte,
Os tecidos se enrolam formando corpos
Que respiram ares de um e de outro.
Longe, na pequena e plácida paisagem setentrional,

O flutuante órgão de tubos nodulares
Aspira o ar do sul e do norte e soa como flauta mole.

Quando o sul encontra o norte,
No canal auditivo corre música de vento,
No intestino matéria ventosa é digerida,
Na trompa de falópio o óvulo é oco,
Cheio de ar, branco.

A obra pode estar num quase-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

VIII

Cilindro quadrado.
Geometria absurda plantada na
Miniatura cidade meridional. Austral
Paisagem quimera,
Faxinal do Céu.

Da conversa esticada
Na pele de rígidos quadrados,
Cubos soprados pelo vento,
Nascem tubos sem ossos.
Só o tecido excitado pela
Matemática sensual do
Vento que insufla o plano e incha o volume.

A obra pode estar num quase-lugar,
Tornado lugar quando o vento sopra.

IX

Roda de ribana.
Música redonda de vozes quadradas.
Blumenal. Praça de cidade do interior.
Teatro Carlos Gomes.

Riscado no chão o desenho de
Círculos concêntricos
Revolve o lugar.
Calmo redemoinho de vento.

Corpo circular de interior vazio.
Cubos soprados,
Arribados sobre arestas de madeira, qual
Ribanceira de um lago sem água e cheio de ar,
Dançam flutuantes na tranqüila praça
Uma ciranda de vento.

A obra pode estar num quase-lugar,
Um ponto qualquer no mapa,
Tornado lugar quando o vento sopra.

Goiânia, junho de 2008.

Originalmente publicado no livro De 2002 a 2005, de Renata Pedrosa. Edição da artista, São Paulo, 2008.

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