quarta-feira, 7 de julho de 2010

Paulo Rezende: Os varais e a paisagem pintada pelo povo





Paulo Rezende: Os varais e a paisagem pintada pelo povo


“Inda o dia vem longe
na casa de Deus Nosso Senhor,
o primeiro varal de roupa
festeja o sol que vai subindo,
vestindo o quadradouro
de cores multicores.”
Cora Coralina


Paulo Rezende é um dos nomes referenciais da fotografia publicitária em Goiás. No início dos anos 80 trocou Brasília por Goiânia, abdicou do curso de Arquitetura na UnB e passou a se dedicar ao Curso Livre de Fotografia da Faculdade de Arquitetura da UCG. Logo depois, em 1986, decidiu investir profissionalmente na carreira de fotógrafo abrindo estúdio próprio. Em mais de vinte anos de atuação formou um acervo que supera o volume de dez mil imagens sobre a região centro oeste, e além de desenvolver inúmeros trabalhos publicitários, produziu fotos, tratou e restaurou imagens para publicações importantes como os livros: “Goiânia 60 anos: Um passeio pela História” de Eloí Calage; “Veiga Valle: Seu ciclo criativo” de Elder Camargo de Passos; “Identidade art déco em Goiânia” de Wolney Unes; “Goiânia: Uma utopia européia no Brasil” de Tânia Daher; entre outros. Paulo Rezende também se interessou pela linguagem cinematográfica realizando (como diretor, roteirista e fotógrafo) dois curta-metragens, ambos exibidos primeiramente em 2007: “Seu Ênio, Pirenópolis e os fuscas”, obra de aspecto experimental selecionada para os festivais de cinema de Tiradentes e de Ouro Preto (MG) e para a Mostra ABD-GO no IX FICA; e “Um dia no Centro” que foi ganhador do Prêmio de Melhor Direção no Goiânia Mostra Curtas – Mostra Goiás.

Nos últimos cinco anos, Paulo Rezende vem trabalhando um ensaio sobre os varais de roupas dispostos na paisagem. Nesta investigação os elementos da linguagem fotográfica, como a opção pelos dispositivos, as decisões sobre os problemas de enquadramento e de foco, o escalonamento dos planos, o uso da iluminação natural, são manobrados com abordagem documental levantando uma série de questões e problemas sobre o varal em suas várias implicações sociais e estéticas. A linguagem é documentarista, mas tem o tom de uma operação que se aproxima do registro antropológico visual, buscando por meio da imagem o entendimento do locus vivencial em que se travam as relações humanas e sociais observáveis a partir de uma tipologia de varais que é definida pelo olhar estético sobre a cor, o movimento, o ritmo, a luz, a sombra, pelo ambiente fotográfico que por um instante se forma no quadro da realidade e que o fotógrafo num gesto flagrante captura. A fotografia ao fixar a imagem da realidade abre reflexões não apenas sobre a aparência, mas também sobre as múltiplas camadas que compõem esta mesma realidade, na qual está inserida o varal.

O ensaio de Paulo Rezende mostra varais suspensos nas paisagens de um país marcado por contrastes sociais e grandes diferenças entre centro e periferia, por má distribuição de renda e exclusão dos padrões de cidadania. Varais registrados na paisagem periférica, seja na grande cidade, seja nas cidades do interior de Goiás, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão ou Bahia, seja num assentamento de sem-terra, seja nas ocupações rudimentares e solitárias das quebradeiras de coco no sertão bruto, seja na comunidade Calunga, seja nas aldeias indígenas. No roteiro de viagem alinham-se Goiânia, Pirenópolis, Xambioá, Imperatriz do Maranhão, Pantanal mato-grossense, Itaguatins, Porto Nacional, Ilha do Bananal e Ilha de Boi Peba. Em todos estes locais seu olhar procura as beiras, as paisagens periféricas de “onde o Judas perdeu as botas”; zonas formadas na margem do capitalismo, localidades em que as grandes distâncias dos centros promovem o isolamento e ressaltam a contínua carência dos bens comuns relacionados à habitação, saúde, trabalho, educação, transporte, etc. O ensaio ao indiciar varais dependurados nas paisagens da periferia da grande cidade ou na periferia do país que é o ermo sertão, mostra também imagens que falam do Brasil dos que resistem às adversidades.

A exposição dos varais nos quintais e arredores das casas é uma prática das classes sociais mais pobres ou de comunidades isoladas culturalmente (caso dos índios e dos Calungas). No meio urbano, sobretudo nos bairros de classes mais abastadas, o varal é um elemento ausente na paisagem. O local onde é fixado denuncia o padrão e a qualidade de vida de seu proprietário. Os ricos possuem residências planejadas, funcionais, confortáveis e estéticas, onde a área de serviço destinada à lavagem e secagem das roupas adquiriu um contorno arquitetônico autônomo do espaço de convivência social, semelhante a uma câmara fechada, tornou-se área não nobre onde privacidade e discrição almejam a invisibilidade. Já a população pobre lava suas roupas e estende seus varais fora de casa, intervém na paisagem por falta de espaço físico e de adequado planejamento na construção de suas residências. A precariedade se acirra gradativamente quando se passa das pequenas casas edificadas nas marginais e nos subúrbios das grandes cidades aos casebres interioranos, das choupanas de pau-a-pique ao rancho de palha solitário no meio do mato. Nestes ambientes a redução do espaço doméstico impele o que não cabe dentro de casa para o limite, para fora, para o quintal.

O quintal é amplamente utilizado pela população pobre como área de serviço e de lazer, local de convivência familiar, de brincadeiras de crianças e de contatos entre vizinhos; espaço de interação entre pessoas, animais domésticos e elementos vegetais. No entorno das casas os varais suspensos nos quintais ampliam o uso do espaço doméstico e provocam intervenções estéticas na paisagem redesenhando-a e colorindo-a. O varal participa da categoria de soluções desenvolvidas pelo povo brasileiro a que chamamos de gambiarra, um procedimento técnico improvisado que revela a precariedade estrutural do país e que responde às necessidades imediatas e à falta de recursos da população carente. Improvisações populares, construções simples geralmente feitas com arame farpado ou fios diversos esticados em estacas de madeira; de tão precário, muitas vezes o varal ocupa a própria cerca que divide um quintal do outro, ou o quintal da rua ou de uma rústica estrada, e até mesmo se oculta no meio do mato. O varal também participa do imaginário das simpatias populares: “Criança com caxumba não pode passar por baixo do varal, senão a caxumba desce”, dizem os mais velhos para evitar que os meninos doentes saiam para o quintal.

Roupas lavadas expostas nos varais para secar ao sol sob a poeira do ambiente à volta. Viradas pelo avesso, revelam insolitamente as entranhas do vestuário para evitar o desbotamento. Um varal de corpos. Roupas são simbolicamente duplos corporais, possuem uma relação de ergometria com quem as usa, traduzem a intimidade, o cheiro, a idade, o sexo, a profissão, o gosto, a personalidade de seu proprietário. As roupas no varal desvelam a privacidade de uma família no espaço público ao movimento do vento: quantos filhos, o tamanho da família, quantos idosos, as festas, se ganhou mais ou menos dinheiro... Dependuradas nos varais, as roupas ao avesso mostradas pelos fundos para quem quiser ver, contam histórias e estórias sobre os muitos personagens habitantes das humildes casas. A pobreza não permite muita discrição.

Um personagem que não é mostrado no ensaio de Paulo Rezende, mas que inevitavelmente o atravessa é a lavadeira. Afinal, o varal como acontecimento plástico na paisagem é organizado por ela ao estender as roupas segundo seus critérios particulares. Porque dependurou as roupas naquela ordem? Como combinou os tamanhos das peças e os formatos? Como distribuiu as cores? As roupas foram lavadas nessa mesma ordem? E depois, crescem na imaginação divagações sobre os modos de se lavar roupa, desde a lavagem nas águas do rio até a máquina de lavar; e, por fim, surge a lembrança das antigas lavadeiras que estendiam seus varais com cantigas apaixonadas.

Os varais mostrando as cores que vestem o povo brasileiro pintam a paisagem com uma paleta diversificada e popular, com a exploração de todas as cores suspensas contra o céu azul, contra a mata verde, contra o dourado do mato seco, contra o mar azul esverdeado, contra o prateado do rio, contra o terreiro avermelhado. Os varais das periferias são compostos de roupas populares (“de costureira” ou “de feira”, sem grife) de cores exuberantes, ludicamente mescladas, dispostas em combinações ou em contrastes, como bandeirolas que enfeitam o dia de festa. Os varais possuem uma alegria que se esparrama pelo espaço como celebração do sol e do vento, da luz e do movimento. Os varais dos índios são absolutamente coloridos e vibrantes, com predomínio de vermelho, alaranjado e amarelo, quentes, intensos e luminosos. Alegria da cor que somente o povo sabe sentir e exprimir.

Varais pintando as paisagens longínquas, nos bairros periféricos, nas cidades isoladas e nos ermos quase esquecidos, onde a comunicação com o mundo se faz no máximo pela antena parabólica, pela televisão; onde o transporte é feito pela velha carroça, pela motocicleta ou a bicicleta que rasgam as distâncias em um tempo sem urgência. Paulo Rezende se posta diante deste universo, como um coletor errante, fotógrafo viajante, que exercita seu ponto de vista colhendo imagens cuja vocação é refletir sobre aspectos da realidade brasileira.

Divino Sobral

* Este texto foi publicado na Revista UFG, Universidade Federal de Goiás, Dezembro 2009, Ano XI nº 7

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