quarta-feira, 7 de julho de 2010

Um estado de reinvenção

UM ESTADO DE REINVENÇÃO

Este texto pontua algumas questões que considero proeminentes no conjunto de obras dos artistas representados pela Galeria Arte em Dobro. Seu propósito é estabelecer alguns campos de reflexão (sem pretensão conclusiva) que permitam ao leitor tanto aproximar-se de processos lingüísticos e poéticos desenvolvidos por esse elenco, quanto aproximar-se de procedimentos desenvolvidos pela produção contemporânea brasileira em sentido mais amplo – uma vez que esse conjunto representa um recorte no rico quadro da produção nacional.

Naturalmente, tal recorte é produto da seleção e dos critérios da galeria, que assim estabelece um inventário de questões formais e poéticas que estruturam seu perfil. É possível enxergar um possível perfil da Arte em Dobro a partir das suas escolhas e da formação de seu elenco: um conjunto que engloba artistas de diferentes gerações, dos anos 80 à atualidade, comprometido com a diversidade das modalidades, dos processos técnicos e dos propósitos poéticos contemporâneos, com a estratégia de descentralizar o olhar sobre a produção nacional – mesclando produtores radicados no eixo Rio-São Paulo e estados do interior do país, como Goiás e Minas Gerais – e com o compromisso de incentivar a inquietação que marca nosso tempo numa atitude de aposta no presente e no futuro da arte brasileira.


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A arte contemporânea está empenhada na continua reinvenção dos modos de ver o mundo que nos cerca, com os acontecimentos, situações e objetos do cotidiano. O interresse pela vida, pelo que pode traduzir o humano no presente, resulta em indagações sobre nossa existência diante de um mundo globalizado, violento, instável e em crise permanente.

A produção atual perpetra indagações sobre a nossa forma de viver e, ao mesmo tempo, procura responder a tais questionamentos. A resposta a essas indagações encontra-se na reinvenção do cotidiano que os artistas promovem. Os parâmetros de relações interpessoais, os códigos reguladores do corpo e dos objetos, dos valores políticos, éticos e estéticos são deslocados para um campo interno de questionamentos e revisões, e nesse sentido os trabalhos passam a atuar como dispositivos culturais que acionam um vetor negativo em relação à lógica perversa da crise do mundo e do sujeito.

Em operação dupla de reinvenção da vida e da arte, os objetos produzidos em escala industrial e imagens de segunda geração, produtos da cultura urbana de consumo diluídos no cotidiano, são raptados de suas funções e deslocados para o campo da arte, em operações, às vezes simples e outras complexas, que conferem diferentes campos de plasticidade e de significância ao material empregado. Os artistas passam a trabalhar como editores, alterando elementos originais, agregando outros extraídos de esferas visuais e conceituais antagônicas, criando obras híbridas pela articulação de inúmeras fontes e procedimentos artísticos ou “não artísticos”. O objeto ou a imagem é empregado como módulo repetido, justaposto, alternado, acumulado, encaixado em inúmeras possibilidades de linguagens e que resultam tanto em propostas bidimensionais quanto tridimensionais, que operam pelo humor ou pela ironia.

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Um segmento de artistas mantém apreço pelo ornamental, pelo arranjo formal que busca oferecer prazer estético ao espectador, conduzindo pesquisas sobre maneiras de posicionar distintas linhagens ornamentais no contexto da arte atual. Desenvolvem trabalhos que restituem o papel da fruição retiniana, que pontuam a participação da forma, da cor, da textura, da luz e da sombra, mas, sem suprimir a reflexão conceitual no contato com a obra.

O uso diversificado do ornamento parece ser estratégia usada para seduzir e enredar o olhar do espectador, além de colocar em debate miríades de referências culturais do Brasil ou de outros locais. A origem do artista, os processos de elaboração de objetos e ornamentos presenciados em sua infância e guardados em sua memória visual e afetiva são revividos com dimensão estética e antropológica, usados como matéria da constituição de suas obras, convivendo com outros processos enformados pelos raciocínios das artes moderna e contemporânea internacional, que aqui adquirem fala singular.

A amplitude destas pesquisas passa pela suntuosidade da decoração barroca, pela exuberância da estamparia, pela referência aos ornamentos arquitetônicos e gráficos de muitos estilos, pelo universo do gosto kitsch e pela singela beleza embutida na rica variedade de artefatos das culturas popular e rural. Quaisquer das opções tomadas pelos artistas potencializam no processo de formação da obra a plasticidade de materiais os mais distintos, dos tradicionais aos mais experimentais. Outro dado a ser notado é que juntamente com o aspecto ornamental, há também o cuidado extremo com a fatura técnica das obras. Em alguns artistas apresenta-se o apego ao exercício da manualidade e as técnicas artesanais (algumas imemoriais) herdadas da sociedade pré-industrial, e noutros ocorre a investigação de técnicas eletrônicas típicas da revolução tecnológica hodierna. Mas, nos dois casos, existe certa dose de ludismo que torna os trabalhos ainda mais atraentes.

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As relações entre os campos plástico e verbal estão também na pauta de alguns artistas do elenco. Se antes, o aspecto literário foi combatido por segmentos rigidamente formalistas do modernismo em função da autonomia abstrata dos meios visuais, hoje ele é recuperado para a criação de obras de natureza dupla, que dão novos encaminhamentos e implicações ao trabalho do artista plástico com a linguagem verbal, seja pela inserção de palavras na imagem seja pela apropriação de textos alheios.

A auto-suficiência dos expedientes visuais é como que indagada pela presença de escrituras na constituição das obras. A junção dos dois campos alimenta tensões e cria terceiras margens de leitura. Isto interessa aos artistas que tentam reunir o maior número possível de recursos lingüísticos e técnicos para a elaboração de seus trabalhos repletos de tensionamentos e de polissemias. O amálgama plástico literário é conduzido em função do sentido que se deseja dar à obra e da relação que se quer manter com o espectador. Experiências de simbiose passam a ser trocadas entre ver e ler, ações que acontecem simultaneamente levando aos muitos ajustes e desdobramentos.

Inúmeras formas de uso de textos são desenvolvidas por esses artistas, ora numa espécie de poesia visual intensamente plástica que potencializa e distende o universo da página e do livro para tornar-se desenho no espaço plano, ora transcende esses suportes e torna-se matéria de objeto ou de instalação no espaço real. O método textual adquire outros contornos e a palavra é lançada em outros jogos de significância em narrativas sobre a memória, em diários que documentam fragmentos da vida cotidiana, em comentários que aspiram dar sentido diacrítico às coisas do mundo e em epístolas cujos destinatários somos todos nós.


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Um outro agrupamento de artistas tem se dedicado a investigar processos e registros fotográficos ou novas tecnologias de manipulação e de edição de imagens para constituírem obras que dependem de outras linguagens, que não a fotográfica, para se consumarem. O caráter pictórico que atravessa parte desta produção, além de expressar a recusa à visão documental, indica a contaminação com modos de ver elaborados pela história da pintura a partir da segunda metade do século XIX. As questões internas da fotografia – como enquadramento, foco, iluminação e gradações cromáticas – são desviadas da ortodoxia em função de raciocínios poéticos e estéticos. De outro modo, a fotografia também tem sido manejada quase como registro de experiências criadas e vivenciadas pelos artistas como situações performáticas, e que instauram reflexões sobre os problemas do corpo, da identidade do eu e do outro, e sobre o estranhamento de estar no mundo.

Hoje, os recursos da informática disponibilizam muitas ferramentas para o processo de editoria de imagens de segunda geração na elaboração de trabalhos cuja definição em categorias é complexa. Novas técnicas de edição e de impressão em suportes que antes serviam apenas à fotografia têm possibilitado a realização de obras que transitam entre as tipologias da imagem reproduzida, sem acharem ainda os seus lugares, não são nem fotografias nem gravuras. A prática do colecionismo de imagens está embutida nos manobras dos artistas-editores. A partir dela se forma um inventário de representações e ícones, tanto do passado quanto do presente, que é depois destituído de seu significado original e lançado em outras experiências, por meio de expedientes digitais de montagem, colagem, acumulação, repetição ou associação, que além de alterarem a plasticidade das imagens potencializam significados inesperados.

Divino Sobral
Goiânia, fevereiro de 2007


Este texto foi publicado no catálogo da Galeria Arte em Dobro na SP Arte 2007. Rio de Janeiro, 2007.

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