quarta-feira, 7 de julho de 2010

Lugar Plano


Foto da montagem com obras de Nina Moraes, Cabelo e Carlito Carvalhosa.

Lugar Plano

A exposição apresenta um conjunto de trabalhos que se formam sobre diversos tipos de suportes essencialmente bidimensionais e planos, e, neste sentido, pretende promover reflexões sobre as práticas de manutenção e de atualização dos suportes e das categorias tradicionais do desenho, da gravura, da pintura e também da colagem .

As pesquisas atuais destas linguagens e suportes se distanciam daquelas colocadas pelo moderno. Numa reflexão mais alargada sobre o espaço plano na arte moderna, vemos que a corrente formalista, dominante no debate central, posicionou-se sobre o modelo de Clement Greenberg do fundamento da autonomia das linguagens artísticas, baseado nas propriedades de cada meio artístico e na potencial ”pureza de sua autodefinição”. As limitações dos meios de que a pintura se serve – a superfície plana, a forma do suporte, as propriedades plásticas das tintas – foram enfocadas como dados que fundavam a especificidade de sua linguagem. A recusa completa a representação de objeto ou espaço tridimensional no interior de um campo bidimensional, o desembaraço da função mimética realista e o repúdio ao literário, característicos das muitas pesquisas abstratas (1) do Séc. XX, geraram o aplainamento dos trabalhos e consequentemente do olhar. Assim, a superfície plana foi enfocada como a única condição da existência da pintura, e também do desenho e da gravura, sua principal distinção das outras linguagens artísticas. As pesquisas modernas pretenderam fundar e gerir suas linguagens num processo crescente de ocupação bidimensional, essencialmente.

As transformações ocorridas a partir dos anos 60 com as rupturas radicais das práticas desmaterializadas, com o experimentalismo de uma profusão de novas possibilidades tecnológicas para a constituição de imagens, com o uso do corpo como suporte e motivo da obra, e, sobretudo, com a preponderância do aspecto conceitual da arte, decorreram em um lugar menor às questões eminentes do modernismo formal e às questões das linguagens então chamadas de tradicionais. As pesquisas mais arrojadas ao prescindirem do objeto artístico poético para investigar o circuito da arte, o contexto sociológico ou antropológico da arte, as ligações das instituições com os sistemas de poder, ao adotarem estratégias documentais de seus trabalhos, segregaram as práticas do plano, de pintura, desenho ou gravura, para a periferia do debate artístico, e inúmeras vezes publicaram atestados de óbito da pintura.

Apesar dos epitáfios, a produção dos anos 80 trouxe novamente as discussões sobre as linguagens tradicionais e o plano para o centro do debate. A exploração do amplo repertório do banco de imagens da história da arte, da cultura de massas e das técnicas populares, subsidiou a configuração de trabalhos pictóricos que injetavam aspectos singulares no campo do conhecimento visual. O diálogo com a história, os empréstimos, releituras, citações e apropriações dos artistas dessa geração conformavam-se através de amplos suportes, em pesquisas cromáticas abertas e destemidas, na exploração dos inúmeros códigos gestuais e na utilização de procedimentos plásticos abstratos para o tratamento de estruturas figurativas. Nos anos 80, governados pelo conceito de Simulacro, retornaram o humor, a paródia, a conexão com o literário e com os temas retirados do cotidiano e dos meios de comunicação de massas. Os trabalhos superaram a necessidade purista formalista do modelo moderno, e assumiram uma situação impura, contaminada com muitos extratos e disciplinas, ganharam contornos híbridos e passaram a discutir com temas da realidade e da vida humana.

Durante a última década do Séc. XX, o interesse pela linguagem da pintura arrefeceu em função das investigações de linguagens tridimensionais como a instalação, o objeto e operações de escultura, e também em função do crescimento das explorações com fotografia, vídeo e outras mídias tecnológicas. Mas esse arrefecimento não implicou na obsolescência das linguagens planas tradicionais. A década de 90 registrou um comportamento agregador de pletoras de questões e linguagens artísticas: se uns artistas distenderam a exploração das especificidades da linguagem, outros deslocaram suas reflexões do meio para o conteúdo de seus trabalhos, e assim rechearam-nos com referências ao corpo, a memória individual e coletiva, a identidade e as questões de gênero e de etnia, a história e suas múltiplas narrativas. O uso de desenho e gravura deixou de ser enfocado com menor relevância e ganhou destaque na produção de inúmeros artistas por todo o país. É importante salientar que muitos desses artistas transitaram entre os diferentes espaços, bi e tridimensional, entre diferentes suportes e materiais, e tal movimento começou a implicar numa situação mais complexa de hibridação das linguagens.

A partir dos anos 90, o cenário contemporâneo passou a ser permeado pela multiplicidade e pluralidade das questões colocadas pelos artistas sobre o plano. Hoje a arte brasileira está num processo de internacionalização de suas problemáticas poéticas e lingüísticas, mas, esse processo não implica no alheamento das tradições plásticas e técnicas existentes no país e que decorrem de sua própria formação e história. A relação de tensão do plano no contexto hodierno é apontada por Tadeu Chiarelli como uma característica da arte nacional formada ao longo do conjunto de obras de miríades de artistas (2). Uma situação de tensionamento que aflige não só o exercício de pintura, gravura ou desenho, mas também a própria escultura que é atravessada por distensões planares.

A exposição traz um recorte no extenso panorama da produção brasileira que opera com a atualização das possibilidades de utilização do espaço plano dos suportes tradicionais – papel, tela e tecido –, que utiliza o campo dos suportes tornando-o flexível e elástico para suportar a manobras de hibridação das linguagens, onde a pintura pode deslizar para o objeto, o desenho recair sobre a gravura, a colagem configurar-se como pintura, o desenho constituir-se como pintura, a imagem turvar-se pelas palavras; onde toda sorte de materiais pode ser empregada na fatura da obra e o ofício e a artesania podem ser valorizados, e onde a elasticidade poética alcança uma envergadura que vai das narrativas particulares, baseadas nas memórias e experiências vivenciais de seus autores, à apropriação de elementos visuais anônimos retirados do universo cotidiano, até as propriedades semânticas do gesto ou da cor.

O lugar plano delimitado pelas bordas dos suportes e pela planura das paredes, constitui o lugar onde os artistas se posicionam para pronunciar suas falas-visuais ao mundo, para tecer seus comentários sobre a arte e a vida, simultaneamente. Para estabelecer seus métodos e estratégias de contato e comunicação com o espectador segundo as formas de existência plástica possíveis unicamente sobre a superfície.

1- Clement Greenberg. A Pintura Moderna. In: Gregory Battcock. A Nova Arte. Perspectiva, São Paulo, 1975, P. 97.
2- Tadeu Chiarelli. Plano em Repouso / Plano em tensão: Hildebrand e a Arte Contemporânea Brasileira. In: Arte Internacional Brasileira. Lemos Editorial, São Paulo, 1999, Págs 93-97.


Divino Sobral. Goiânia, 2006

Este texto foi publicado no folder da exposição Lugar Plano realizada no Espaço Cultural Contemporâneo, Brasília, 2006.

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