sexta-feira, 9 de julho de 2010

Carlos Sena: Apropriação poética do cotidiano



Carlos Sena: Apropriação Poética do Cotidiano

Há muito que a apropriação poética de objetos e imagens produzidas industrialmente tem sido uma estratégia empregada por artistas para formalizarem seus trabalhos. A partir dos anos 60 do século XX, com o agravamento da crise dos paradigmas artísticos fundados na noção de pureza das categorias e nas suas especificidades, essa prática foi distendida em inúmeras possibilidades de pesquisa.

Dessa crise emergiram novos princípios que passaram a orientar a produção de muitas das principais tendências da arte contemporânea internacional. Os estatutos foram alterados com a legitimação do legado duchampiano; a anti-arte que antes fora ataque à instituição arte (ao mesmo tempo em que a desvendava), foi conduzida à posição de fundamento desencadeador de outra modalidade de arte, que passou a necessitar da chancela do circuito artístico para legitimar-se, porque a dúvida ontológica sobre ser ou não arte tornou-se inalienável de sua constituição(1), e, também, porque o artista tornou-se um manipulador de signos, mais que um produtor de objetos de arte, como coloca Hal Foster(2).

O questionamento sobre os limites entre o que é e o que não é arte é enredado no processo de estetização do real, da vida e do cotidiano. A dúvida segue atrelada ao movimento de dilatação do campo artístico e colada às operações políticas de apropriação, agregamento e manipulação de objetos, representações e signos extraídos da crua realidade da sociedade industrial de consumo, onde os bens materiais e imateriais são determinados pela lógica da mercadoria.

A produção desenvolvida por Carlos Sena nos últimos anos opera dentro desse contexto, colocando-se entre aquilo que antes não era arte e que a partir de sua manobra passa a ser visto como tal, indagando os limites, manipulando elementos apropriados, dialogando com dispositivos do circuito e da instituição arte e realizando cruzamentos e hibridações entre arte e outras disciplinas. É uma produção mergulhada no presente, comprometida com os seus mitos e prazeres, mas de uma maneira crítica e irônica.

Ao apropriar-se da materialidade dos objetos de consumo e da visualidade da linguagem publicitária, apreende algo da essência do mundo contemporâneo: a descartabilidade que a tudo atinge, a fugacidade que afeta sujeito e objeto, a efemeridade que apaga a memória. Entretanto, sua manobra suspende o objeto da obsolescência, dá-lhe outra existência e concede-lhe uma memória, fixando pontos de contato entre o efêmero e o permanente, entre o vulgar e o singular.

Para tornar perdurável o efêmero, Sena dispõe de inúmeros procedimentos formais, que vão da desfiguração do objeto à sua apresentação quase imaculada, da articulação com elementos resgatados da cultura religiosa, como um modo de sacralizar o profano, até a convivência com simulacros da cultura kitsch. Tudo isso é submetido a tratamentos que estetizam e historicizam os objetos, uma vez que são derivados de práticas do circuito de arte e sobre elas se instaura um caráter reflexivo.

Carlos Sena desloca os objetos de uma condição direta e programada, implicada na ordem funcionalista, para uma condição indireta e ambígua, que requer a adjunção de técnicas da museografia e da prática do colecionismo como intermediadoras que colaboram para a estetização e para elevação desses objetos à categoria de arte. Suas instalações são como coleções de objetos semelhantes e, à medida que atuam como coleções, exigem a “observação disciplinada e o direcionamento da atenção para a organização consciente desse pequeno universo”, para que, então, o objeto seja “re-significado” (3). Opera com procedimentos de expografia, dando destaque aos processos de montagem e à arte de expor objetos, e mais, reafirmando as propriedades dos aparatos expositivos e da instituição museológica para subtrair o objeto à contingência do mundo trivial e torná-lo especial, potencializá-lo diante do olhar numa atividade exclusivamente expositiva, que vem, assim, sacralizá-lo e eternizá-lo.

O artista não escolhe objetos sofisticados, luxuosos e caros, e sim os banais, que circulam de mão em mão e penetram na intimidade doméstica sem que se perceba alguma beleza singular em suas formas. Elege propositadamente a trivialidade de flyers e cartazes, rótulos e embalagens esvaziadas, réplicas de gesso; enfim, objetos sem a imagem de valor elevado a eles agregada. Na acumulação e na sobreposição de objetos, sena encontra os processos para desenvolver o seu trabalho que ora tangencia a pintura, ora relaciona-se com o objeto, ora se configura em instalações.

Uma propriedade de suas operações é o cruzamento e a equalização de informações com distintas bases estéticas. É um raciocínio erudito baseado nas conquistas da arte contemporânea que preside suas elaborações plásticas, que gerencia os rumos dados aos processos herdados da sabedoria artesanal popular, e que organiza os dados extraídos do universo pop, contidos no material do qual se apropria. É uma densa, mas também humorada, reflexão sobre os problemas culturais de seu espaço e tempo, que leva o artista a posicionar numa mesma proposta bases estéticas diversas e até opostas, a reunir imagens heterogêneas como de uma vaca e de um caminhão de coca-cola.

(1) Ver Ronaldo Brito. O Moderno e o Contemporâneo: O novo e o outro novo. In: Arte Brasileira Contemporânea. Caderno de Textos 1. Rio de Janeiro, Funarte, 1980, p. 5-9.
(2) Hal Foster. Recodificação: Arte, espetáculo, Política Cultural. São Paulo, Casa editorial paulista, 1996, p140.
(3) Marcos Moares. O Colecionador. In: Grupo de estudos em Curadoria. São Paulo, MAM, 1998, p. 42.


Divino Sobral

Este texto foi publicado no catálogo da exposição Carlos Sena: Objeto In-Direto. Goiânia, Museu de Arte Contemporânea de Goiás, 2004.

Um comentário:

  1. Passando para matar saudades das suas obras poéticas.Feliz fim de semana.beijo.Lia...

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